Carla Zambelli e a sororidade: racismo é o limite
Fosse a deputada uma mulher negra empunhando uma arma para um homem branco, o que aconteceria?
“Misoginia feminista existe. Esquivar-se a reconhecê-la é criar oportunidades desnecessárias para que as antifeministas tentem desacreditar o feminismo”.
Chimamanda Adieche
É impressionante como certos conceitos tão caros para as lutas sociais são terrivelmente distorcidos de acordo com a desonestidade e/ou ignorância perniciosa de alguns.
Pausa para falar na ignorância perniciosa:
A filósofa afro-americana Kristie Dotson cunhou esse conceito para explicar a ignorância como característica cultivada e mantida por algumas pessoas conscientemente. Exemplo clássico é quando uma pessoa tem uma atitude racista e se justifica dizendo que não sabia que era errado. Só que essa pessoa teve e tem diversos meios e recursos para aprender e escolhe “malandramente” permanecer não sabendo para poder usar a ignorância como desculpa.
Pois bem, sororidade é a versão feminina do conceito de fraternidade. Frater vem do latim e significa “irmão”, logo, fraternidade significa irmandade ou laços de profunda colaboração entre homens que se reconhecem como iguais. Está totalmente ligado ao clérigo ou à igreja, já que de frater vêm o termo frade ou frei. Soror, por sua vez, significa irmã, portanto, sororidade significa laços estreitos de colaboração mútua entre irmãs ou freiras.
Isso já foi exaustivamente falado na mídia, nem sempre de maneira correta, é verdade, mas já tivemos tempo o bastante para aprender. No entanto, muitas mulheres seguem envoltas na ignorância perniciosa quanto a esse conceito.
O mais recente caso ocorreu no último fim de semana com a deputada Carla Zambelli que ao ser flagrada perseguindo e ameaçando um homem negro empunhando um revólver, pelos arredores da Alameda Lorena, afirmou estar se defendendo de agressões físicas e verbais.
Vídeos gravados por pessoas que estavam no local, desmentem o relato da atual deputada. Vemos claramente que ela se jogou e que não foi ofendida, nem ao menos era ela o foco da discussão de cunho político. Inicialmente era uma confusão entre homens.
Para além do racismo óbvio da cena, que contava com mais dois homens brancos, mas, apenas o negro recebeu a fúria de Zambelli, há também a infração da lei que estabelece que parlamentares não podem andar armados. Isso já seria motivo de repúdio de toda a sociedade, uma parlamentar infringir a lei.
Mas muitas mulheres (brancas, diga-se de passagem) evocaram a falta de sororidade com a deputada, que afirmou ter sido agredida, mas foi desmentida por vídeos que circulam nas redes sociais.
No entanto, a sororidade não é álibi e tampouco uma permissão coletiva para atrocidades, como o racismo, por exemplo, dada a uma pessoa simplesmente porque é uma mulher. Mulheres que agem como homens opressores não merecem sororidade porque não se comportam como “irmãs” e sim como derivados comportamentais da masculinidade tóxica.
Além disso, o termo ‘sororidade’, embora tenha sido emprestada do vocabulário clerical, para o feminismo, tem uma conotação política e não religiosa como a palavra sugere em sua aplicação original.
A sororidade é ética. Não é um caso de amor incondicional entre mulheres. Amor incondicional nem ao menos existe. Todo sentimento impõe condições de ser e existir. Se amo, quero no mínimo ser amada de volta.
Mas a sororidade é uma ética política que nos ensina o respeito intra-grupo, mesmo com as especificidades que o grupo “mulher” apresenta. Uma dessas especificidades é o racismo estrutural que somado ao machismo coloca mulheres negras na base da pirâmide social.
A sororidade é uma postura de respeito constante que entre outras coisas, exige autovigilância constante, pois como diz Paulo Freire no fundamental “Pedagogia do Oprimido”, o hospedeiro do opressor vive em nós e se manifesta em diversos momentos.
“O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo.”
Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, 1969
Não sendo amor incondicional e sim um código de ética política, a sororidade depende de reciprocidade e senso de coletividade.
Uma mulher que não é feminista, mas respeita e compreende a luta das mulheres merece sororidade tanto quanto todas as mulheres que se posicionam como feministas.
Mulheres racistas e misóginas não merecem sororidade porque estão em estreita colaboração com os opressores, sendo inclusive consideradas sub-opressoras, termo cunhado por Paulo Freire e que define pessoas que, mesmo pertencendo aos grupos oprimidos, assimilam e reproduzem as mesmas práticas do opressor, ainda que não se beneficiem plenamente dos privilégios construídos pelas estruturas de dominação e opressão.
Tratar a sororidade como clube da luluzinha ou como um círculo de amor incondicional onde mulheres suportam todo desvio comportamental manifestado como violência racista e misógina é romantizar a grande dificuldade que as relações sofrem por serem forjadas em meio a deformidades presentes na sociedade.
Distorcer o significado de sororidade é preparar um ambiente propício para manipulações e manutenção dos abusos que podem ocorrer entre mulheres que estão profundamente conectadas com as práticas opressoras do machismo, do racismo, do elitismo, fragilizando ainda mais as que estão na base da pirâmide social e, portanto, tem menos poder social e recursos de defesa.
Desviar a sororidade de sua função política é invalidar as lutas e fomentar violências sutis e/ou escancaradas que podem ocorrer (e ocorrem com mais frequência do que pensamos) dentro dos grupos oprimidos.
Ser oprimido não é um certificado de qualidade humana e muito menos de bom caráter, é tão somente uma condição social dada pelos efeitos das desigualdades históricas. Se a deputada Carla Zambelli ameaça um homem negro pelas ruas da cidade, tal qual faz a política genocida de origem colonial empregada há século em nosso país, ela age como sub-opressora e não merece qualquer ato de sororidade, porque em nenhum momento pensou nas mulheres negras que sofrem as consequências do genocídio cotidianamente, seja pela perda de seus filhos, maridos/companheiros, amigos, parentes, etc.
Apenas ser mulher não significa que se tenha consciência das fragilidades que essa condição social implica e significa menos ainda que se esteja sofrendo, realmente, as ações do patriarcado. Fosse a deputada uma mulher negra empunhando uma arma para um homem branco, o que aconteceria?
Estamos todos interligados enquanto grupo, pelas opressões que sofremos e isso requer solidariedade e ética. Mas o que cada um faz daquilo que o sistema faz do grupo, é individual e pode estar corrompido, colocando em perigo todos que se aproximam e não analisam friamente as práticas utilizadas.
Sororidade, sim, com gelo e limão. Cegueira romântica para os sub-opressores e romantização da ética política da sororidade, não. Onde há racismo é impossível haver sororidade.