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Daniel Alves e o silêncio dos homens: o pacto supremacista da masculinidade

Afinal, o que importa a opinião de homens confortavelmente situados no centro da supremacia masculina e brancocêntrica?

26 fev 2024 - 15h01
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O ex-jogador brasileiro Daniel Alves foi condenado por estupro na Espanha
O ex-jogador brasileiro Daniel Alves foi condenado por estupro na Espanha
Foto: Reprodução: Instagram/danialves

O feminismo liberal, composto majoritariamente por mulheres brancas e bem nascidas, insiste de maneira preocupante na inclusão voluntária e ativa de homens ao feminismo. Isso não é um movimento novo, já tem bastante tempo e sempre me pareceu um ponto a ser compreendido para ser superado, pois o entendimento da participação do opressor em uma luta que o atinge diretamente deve ser estritamente calculado e consciente de como e quando ele é possível. 

É um fato que para que a sociedade se transforme e desarticule suas estruturas opressoras, os que se valem dos privilégios sociais que essa configuração de sociedade proporciona também precisam ser transformados. Isso vale para qualquer um dos pólos de opressão que estruturam a sociedade: racial, de classe e de gênero. E, nesse sentido, a participação de toda a sociedade nas lutas sociais por emancipação é importante - e até desejada. 

Mas não seria muita ingenuidade (ou falta total de entendimento sobre como as estruturas funcionam) esperar que isso aconteça sem nenhum atrito, sem nenhum confronto ou tensão, ainda que não necessariamente violenta? Será que nem todo mundo entende que temos um problema real e naturalizado na personalidade social brasileira, que é a demagogia e a hipocrisia que leva pessoas a falarem uma coisa e agirem na direção oposta do que sinalizam? Isso é real.

Um homem acusado de assédio sexual por uma artista chamou atenção por ter pousado com cartazes antiestupro, com cara de “aliado”. Não foi o primeiro e nem será o último. Então, porque a fala de masculinidades tão desequilibradas, perdidas e entorpecidas por privilégios seculares, está sendo tão pleiteada?

Não é de compreensão geral, ainda, que privilégios sociais são altamente viciantes e que, uma vez desfrutando dele, toda a subjetividade do opressor fica terrivelmente e gradativamente comprometida, a ponto de se defenderem de toda e qualquer ameaça à sua zona de conforto, que se localiza no cerne do aconchego da supremacia?

Tenho insistido muito na autocrítica desse feminismo mainstream que funcionam mais como subopressão  do que como deveria ser: uma luta coletiva por emancipação social, uma vez que se valendo do poder midiático, paralisa discussões realmente urgentes com futilidades que não angariam ganhos para a luta que é de todas. Ao contrário, uma vez massificada, as pautas se esvaziam e perdem sua razão de existência, afetando aquelas que só têm acesso ao que a mídia hegemônica oferece.

Fico me perguntando se mulheres que por inocência ou por ignorância esperam ouvir a vociferação duvidosa de supostos aliados dão igual importância a vozes femininas combativas ou se lutam para que essas vozes se erguem e se fortaleçam o bastante para tensionar as estruturas que nos fragilizam. Será?

Não é responsabilidade exclusivamente do machismo que o antifeminismo exista. É responsabilidade também daquelas que tornam a luta coletiva um palanque de discursos individualistas, sedentas muito mais pela atenção masculina do que pelo equilíbrio social necessário para a segurança de todas. Isso afasta muitas mulheres que não se permitem servirem de escada ou de suporte para a ascensão daquelas que, intuitivamente, elas assimilam como subopressoras e não como alguém que vai efetivamente representá-las. 

Inclusive, uma das manutenções estratégicas que sustentam o feminismo mainstream é um pacto da branquitude (conceito muito bem colocado no debate público pela teórica Aparecida Bento). 

Caso interessante para estudar essas dinâmicas é o recente e uníssono coro que pleiteiam declarações masculinas diante da condenação a 4 anos e seis meses de prisão do jogador Daniel Alves por ter estuprado uma jovem na Espanha. 

Pergunta sincera: o que importa a opinião de homens confortavelmente situados no centro da supremacia masculina e brancocêntrica? Nada. E é mais do que esperado que o silêncio diante dessa e de qualquer outra condenação por violência machista aconteça quase que por unanimidade. 

Isso, inclusive, é prova contundente de que as opressões, como bem descreveu Paulo Freire, Frantz Fanon e teóricas importantes da psicanálise feminista, não moldam apenas a sociedade, moldam subjetividades e definem comportamento, do oprimido e de quem oprime. Tanto que esse silêncio pode, e deve, ser interpretado como autoproteção ou, como apontado na teoria freudiana, um mecanismo de defesa, uma vez que, nascendo e se desenvolvendo em uma sociedade estruturada pela hierarquia de gênero, homens são desde cedo levados a entender o corpo da mulher como público e à disposição de seus desejos sexuais deturpados. 

Contudo, se por um lado a opinião masculina sobre a condenação (que poderia se estender a todo e qualquer homem, visto que, a opressão de gênero é uma estrutura social que os autoriza a cometer esse crime) não deveria ter relevância, por outro, a insistência de mulheres, que se posicionam como feministas, em obter essa falas é preocupante, pois demonstra traços menos óbvios de uma dependência que precisa acabar.  

Ainda que estejamos falando de homens que têm espaço midiático e influência social, acreditar que eles poderiam usar a voz para condenar crimes ou atitudes machistas que possivelmente fazem parte do perfil comportamental deles é não ter noção do abismo que representa a ideologia de gênero opressora e dominadora que pauta a sociedade e produz privilégios. 

Sobretudo quando falamos em mulheres brancas (mas isso existe também entre as racializadas), entender-se como extensão do domínio masculino. Daí o feminismo liberal ser tão perigoso, pois defende uma libertação ilusória que só se concretiza mediante pactos silenciosos onde homens brancos cedem uma gota de seu poder para umedecer o copo de mulheres brancas e estas acreditam que estão ocupando espaços e lugares de poder de igual para igual. 

Me lembro de uma palestra da feminista norte-americana e negra Patrícia Hill Collins, no Itaú Cultural em SP, que ao ser questionada por mulheres da platéia sobre como responder a provocações e a disputa de narrativas impostas por homens brancos, ela respondeu mais ou menos nessas palavras: 

“Porque vocês dão tanta importância ao que eles falam?”.

Isso foi pedagógico.

É preciso que mulheres assumam seu lugar de fala e falem a partir dele lhes autoconferindo o reconhecimento e a autoridade que é nossa por direito inquestionável e invariável. Eu quero ouvir a opinião de mulheres em assuntos que nos dizem respeito e dos homens quero apenas a escuta ativa se transformando em prática transformadora para si e para a sociedade.

E é preciso que entendam que o pacto supremacista da masculinidade não depende da opinião favorável que eles possam dar em casos como esses e tampouco se posicionar como aliado define se realmente são aliados, afinal, quem está surfando nos privilégios dificilmente vai recuar voluntariamente. 

Moral da história: pouco importa a opinião de qualquer homem sobre uma condenação por estupro. O que importa é que eles, por bem ou por mal, aprendam que o corpo da mulher, de qualquer mulher, independente das condições, do local ou situação em que se encontrem, existe para sua posse e tampouco para atender seus desejos deturpados pelos moldes patriarcais e falocêntricos. 

Fonte: Redação Nós
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