É preciso estar informada e forte: os casos Gal Costa e Preta Gil
A desinformação é uma espécie de “pé” que nos empurra para o abismo
Nas últimas semanas, dois casos foram muito comentados: a minuciosa reportagem da revista Piauí, que traz à tona fortes suspeitas de que a libertária e subversiva cantora Gal Costa, falecida em novembro de 2022, terminou seus dias sofrendo as agruras de um relacionamento abusivo, e o desabafo das dores de um processo de separação pelo qual passa uma das mais queridas filhas da ilustre família Gil, a também libertária e subversiva Preta Gil.
Chama atenção porque em pleno século 21 estamos comemorando uma lei de paridade salarial como se fosse um grande avanço quando, na verdade, embora seja uma questão necessária, não é de primeira ordem, já que é muito voltada a grupos específicos de mulheres das classes sociais mais altas.
Mas o fato é que acreditar que isso seja o maior avanço dos últimos tempos faz parte do pacote de desinformação que tem servido à manutenção do status quo patriarcal e sexista, além de ignorar as interseções raciais do sistema trabalhista brasileiro que nem sequer absorve integralmente no mercado formal as mulheres racializadas.
Mas a questão aqui é: a desinformação é uma arma apontada para nossas cabeças ou uma bomba-relógio plantada no cerne de nossa saúde emocional.
Gal Costa, assim como milhares de mulheres espalhadas pelo Brasil adentro, não sabia reconhecer os sinais não tão óbvios que caracterizam um relacionamento abusivo. Tampouco imaginava que isso também poderia acontecer em uma relação entre mulheres. As mulheres de sua geração experimentaram todo tipo de abusos e resistiram, se reinventaram e conseguiram avançar em muita coisa. A geração posterior é prova disso. A própria Gal Costa sempre foi exemplo de liberdade e destemor, tendo sido protagonista de momentos de verdadeira afronta ao sexismo patriarcal, que nadava de braçada no mar sangrento da ditadura militar. Só que toda essa rebeldia era instintiva, espontânea, o que nos remete ao quanto falaciosa e manipuladora das forças femininas era a alcunha de “Sexo Frágil”, muito bem desconstruída por Rita Lee nos anos 80. Nunca fomos frágeis, isso foi um estereótipo minuciosamente usado ao longo da história para nos paralisar.
Mas o grande entrave da época de Gal ainda era a dificuldade de popularização das discussões e disseminação da informação. Isso foi impedimento para muitas no caminho essencial da luta por emancipação social, que é a tomada de uma conscientização profunda sobre a sua real situação social. E isso é a síntese do Empoderamento trazida por Paulo Freire em seus escritos para oprimidos.
E é exatamente essa a primeira proposta do conceito e prática de Empoderamento.
Ao contrário do que Preta Gil foi induzida a acreditar, Empoderamento não é para engolir os sinais que apontam desvio de caráter de outras mulheres e nem para forjar uma falsa imagem de força pessoal. Nunca Preta Gil esteve tão perto do empoderamento real quanto no desabafo que fez em sua rede social sobre o fim do casamento envolvo em uma traição durante seu tratamento de saúde*. Ser emancipada é também ter a liberdade de expressar suas angústias e incômodos e agir para eliminá-los. É a dimensão psicológica do trabalho de empoderamento que nos dá ferramenta para alcançar isso.
Infelizmente, o desabafo comovente da querida Preta Gil deixou claro o quanto a desinformação é uma espécie de “pé” que nos empurra para o abismo. Nem empoderamento, que é um trabalho emancipatório mais atrelado ao entendimento do que significa poder e de como podemos transformá-lo, nem a empatia, que é uma solidariedade ética e não um contrato de autosilenciamento diante de violências e abusos que mulheres absorvidas pelos machismo podem impor a outras, devem ser distorcidos, como tem sido feito pelos meios publicitários (onde as masculinidades são predominantes) para vender produtos.
Força é uma coisa que quem tem não mostra à toa, mas quem não tem costuma ostentar.
A distância entre as gerações de Gal Costa e Preta Gil deveria ser marcada pelo acesso à informação dado pela revolução da internet, que ainda não é o melhor dos mundos em termos de acesso democrático e garantia de veracidade do que veicula.
Mas nos aproximou o bastante para que criemos ambientes seguros de trocas saudáveis e vitais a nossa emancipação social. Entretanto, o sistema de dominação e opressão em suas ações de contra-ataque conseguiu cooptar conceitos e pautas que se voltam contra nós e nossa segurança em um mundo assumidamente antimulheres. E a prova disso é o triste encontro geracional entre duas grandes mulheres em faces e fases distintas da mesma dor: a da violência de gênero.
Gal por não ter acesso e Preta por ser atingida pelos desvios perigosos do contra-ataque que intercepta nossas pautas e discussões vitais.
Como tantas vezes, essas mulheres nos inspiram, aqui o saldo positivo em meio à dolorosa identificação com suas vivências é, mais uma vez, a oportunidade de entendermos que só o que pode nos salvar e nos conduzir rumo a uma emancipação social real é o acesso à informação libertadora e a contínua reflexão de como o sistema atua em nossas vidas, desde nos fazer engolir desmandos de sub-opressores (como no caso de Preta Gil) até nos fazer romantizar a reprodução das violências de gênero vindas de nossas iguais (como no caso de Gal Costa).
Oprimidos podem ser opressores e a probabilidade é de que, consciente ou inconscientemente, serão e usarão as mesmas práticas e violências das branquitudes e masculinidades.
E, por isso mesmo, devemos nos valer desses casos que se tornam públicos para não esquecermos que é preciso estar informada e forte.
*Não publicamos o desabafo em respeito à cantora, que apagou a publicação em seguida.