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Lizzo e a falácia da autoestima instantânea

Precisamos falar sobre a quantidade de discursos falsos de empoderamento que são vendidos nos meios de comunicação de massa

3 ago 2023 - 16h34
(atualizado em 26/10/2023 às 09h27)
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Fãs do mundo todo acompanham, estarrecidos, denúncias feitas por ex-bailarinas da cantora Lizzo
Fãs do mundo todo acompanham, estarrecidos, denúncias feitas por ex-bailarinas da cantora Lizzo
Foto: instagram/@lizzobeeating

Pois é, a imprensa do mundo todo e os fãs de uma estrela da música norte-americana, a cantora Lizzo, estão acompanhando, estarrecidos, o desenrolar do processo movido por três de suas dançarinas, em que denunciam terem sofrido uma série de violências e maus-tratos praticadas por ela. Entre outras coisas, figuram acusações de preconceito religioso, abuso de poder, constrangimentos, hostilidades e até, pasmem, racismo e gordofobia

O que choca as pessoas, em pleno 2023, não é o fato de que sucesso pode corromper as personalidades mais frágeis e imaturas, algo que deveria ser objeto de discussão constante e em todos os meios sociais, mas, sim, o fato de que a cantora Lizzo galgou o lugar da fama e do poder midiático sendo vendida como uma mulher empoderada que, no linguajar da alienação, significa uma mulher que é exemplo de autoestima e do que é popularmente chamado de pessoa “bem resolvida”. 

Lizzo se defendeu das acusações e não há discussão sobre o fato de que a justiça é que tem que apurar se as denúncias são verdadeiras e definir como ela será responsabilizada caso se conclua que ela é culpada, ainda que as redes sociais manifestem o vício no julgamento precoce e inconsequente de tudo e todos. 

Entenda as denúncias contra a cantora Lizzo feitas por suas ex-dançarinas Entenda as denúncias contra a cantora Lizzo feitas por suas ex-dançarinas

Educação emocional

O que deve ser tema de discussão é a quantidade de discursos falsos de autoestima e empoderamento que estão sendo vendidos nos meios de comunicação de massa, e o quanto todos, invariavelmente, escondem profundos sentimentos de inferioridade, inadequação, e auto-ódio. Quanto mais se afirmam empoderadas, mais apresentam sintomas que remetem a um vazio interior que a pessoa não está sabendo administrar e, às vezes, nem sequer está emocionalmente lúcida para reconhecer ou identificar.

É importante destacar inicialmente que em nossa sociedade, a educação emocional não é uma prática rotineira. Na verdade, vivemos em uma sociedade em que a afetividade, ou seja, nossas emoções e sentimentos, não é levada a sério como elemento que nos constitui enquanto seres humanos e sociais. Tanta negligência com essa parte importante de nossa formação pode ser um dos caminhos que tem nos levado a problemas mais profundos que afetam diretamente nossa saúde mental. 

Mas cabe usar o caso do suposto comportamento inadequado da cantora Lizzo com pessoas que estão inseridas no mesmo grupo social, mulheres e negras, para refletir sobre o quanto as ferramentas de trabalho social contra as opressões estão banalizadas, vendidas ao próprio sistema que produz as violências que oprimem, para serem pasteurizadas, se tornarem palatáveis para alienar ainda mais os grupos sociais que dependem delas para fins de emancipação.

Estou sempre afirmando sem receio de estar equivocada e apoiada por observação e escuta de pessoas em diversas camadas sociais que a medida da autoestima de um indivíduo é dada pela maneira com que ele trata o outro neutro, que são aquelas pessoas que não lhe oferecem qualquer benefício. Isso porque em todos os meios sociais, mais explicitamente nos meios onde o dinheiro, a fama e o poder circulam com maior volume, as relações se dão por conveniência, logo, é frequente ver uma atmosfera de fluidez nas relações.

Se olharmos atentamente, percebemos o que Bauman chamou de relações líquidas, ou relações superficiais que se desfazem com certa facilidade, deixando claro que a argamassa que as mantinha não era a troca de afetos e, sim, de benefícios, status, etc. Não são relações, são bajulações muito bem construídas para convencer os envolvidos e os que estão de fora. Então, há um sólido verniz de generosidade, de aceitação, de apreço e outros sentimentos bons simulados pelo comportamento bajulador. Até racismos, sexismos e preconceitos diversos são disfarçados ou retidos nas suas manifestações mais explícitas. Mas, cabe sempre desconfiar de como seriam essas pessoas em contato com quem não lhes convém. E, no caso de pessoas que estão inseridas nos grupos oprimidos, essa pergunta se torna ainda mais importante, só que em outro formato:

Será que ele superou os danos que o sistema de hierarquias e supremacias raciais, de gênero e classe econômica fez com ele?

Lizzo é uma mulher negra e gorda que obviamente passou por situações de violências constantes ao menos de gênero e raça (e possivelmente de classe social). Já passou da hora de discutirmos o racismo sob a perspectiva do molde psíquico que as opressões imprimem em indivíduos fadados a esse lugar social. Não por acaso, a publicização das denúncias desencadeou uma onda de pseudodefesas motivadas pela indignação com o comportamento da cantora mas, que reproduzem exatamente os erros dela, quer dizer, xingamentos racistas, sexistas e gordofóbicos como manifestação de indignação com o suposto racismo, sexismo e gordofobia da acusada. 

Deuses e deusas

No caso da Lizzo, se as acusações forem comprovadas pela justiça norte-americana, é só mais uma que conquistou fama e poder usando um discurso que nem ao menos entendeu, contando com a alienação da massa que transforma em Deus ou Deusa toda e qualquer pessoa onde eles conseguem projetar seus sonhos narcisistas de ascensão e, mesmo que de maneira inconsciente, mantém as bases do comportamento tido como normal em nossa sociedade, mas que é nocivo e destrutivo para toda e qualquer relação humana. 

Uma vez transformados em Deuses/Deusas essas pessoas se perdem mais ainda de si mesmas e realizam o “sonho do oprimido se tornar opressor”, quer dizer, manifestam todo ódio e repulsa por si mesmo que foram camuflados por um falso empoderamento discursivo que de tão frágil e mal trabalhado não consegue ser materializado. A autoestima é o ponto nevrálgico da psique de indivíduos e grupos sujeitos a práticas e violências promovidas pelas opressões que ergueram nossa sociedade e fortalecê-la é uma luta constante e multidisciplinar que nunca se esgota, mas que tem como termômetro as relações com seus iguais e com aqueles que estão dentro e fora de seus grupos e que não interferem nas suas ambições pessoais ou não lhe angariam benefícios. 

Verdadeiras ou não, as acusações de comportamento inadequado da cantora Lizzo não é caso isolado e, infelizmente, não será a primeira vez e tampouco a última que os efeitos psíquicos das opressões se manifestam como reprodução exata das violências sofridas por esses indivíduos e seus grupos, enquanto as minorias sociais não entenderem que é fundamental cuidar da saúde mental, tecnicamente falando, buscando curar os estragos que as estruturas e sistemas de opressão fazem na mente dos que estão nos baixos lugares da pirâmide social.

A cura começa por entender que ser <<<<empoderado>>>> não é ser arrogante, ter mania de grandeza, se achar melhor que os outros, esquecer da sua condição de humano e jogar no lixo a humildade, mas, sim, estar fazendo um trabalho psíquico constante de recuperação da autonomia mental e de erradicação da alienação sobre suas emoções e sentimentos. E isso não dá like e nem engajamento, mas ajuda a sobreviver e reter nossa dignidade.

Entenda a diferença entre racismo e injúria racial:
Fonte: Redação Nós
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