Milton Santos e a verdadeira intelectualidade
O que diriam os autoproclamados intelectuais para um Milton Santos que disse que o Brasil precisa mais de intelectuais do que de letrados?
No último Carnaval uma certa celebridade, que ficou famosa por falar de política (ainda que de modo enviesado e prolixo, pretensamente popular), ao ser convidada para um camarote supôs que quebraria estereótipos por ser uma intelectual que curte o Carnaval.
A despeito da mentalidade racista que se pronuncia como um ato falho nas entrelinhas desse pensamento (porque ela, assim como todo antirracista que se preze, não quis ser racista) vemos que os arautos da verdadeira intelectualidade brasileira, apesar de já falecidos, continuam sendo mortos em nome do mercado dos likes e seguidores que se tornou as redes sociais.
Milton Santos é um deles e o mais cabível para esse fragmento do Brasil de 22, que infelizmente não tem Tarsila nem Mário, mas tem a vanguarda do atraso.
Milton Santos se opôs diversas vezes ao academicismo que estaria matando a formação de intelectuais no país. Foi esse ilustre e fundamental geógrafo baiano também que melhor definiu a diferença entre ser intelectual e ser letrado.
Ter mestrado, seja na USP ou em Harvard, não torna ninguém um intelectual. Mas o torna um letrado. Isso não é ruim, já que segundo Santos, cada um tem função importante na sociedade. Mas um letrado é um transmissor ou reprodutor dos saberes acadêmicos. O que não é pouca coisa. Mas um letrado pode ser um intelectual? Claro que sim.
Mas só se conseguir se desprender do desejo que lhe é plantado na academia, de sobrepor os saberes populares impondo sua cartilha umbiguista que se coloca como centralidade preconceituosa e autoritária na formação do pensamento crítico e da criatividade como viés do saber.
No Brasil que ainda precisa de cotas raciais como medida reparatória do atraso educacional imposto à negritude, aos indígenas e aos pobres, a hipervalorização da carreira acadêmica é no mínimo, humanamente falando, uma falta total de sensibilidade política. Falta de sensibilidade é coisa de letrados que se perderam na burocracia e soberba da branquitude que converteu o saber acadêmico em novas práticas de colonização ou de colonialidade do saber. Mas o que é ser um intelectual?
Bom, na definição certeira de Milton Santos, que conseguiu ser simultaneamente e com maestria um letrado e um intelectual, é provocar o desconforto necessário para a formação de novas consciências. E se já não era um papel fácil em sua época, imagina agora, no auge da cultura do cancelamento onde se confunde crítica com ataque e vice-versa? Em tempos de “caça-likes” e toda sorte de autoritarismos que perseguem e aniquilam nos bastidores do mundo virtual as divergências e inviabilizam toda crítica chamando de ataque?
Nesses tempos onde há milícias digitais de direita e de esquerda, que estabelecem em off-line o que deve ou não ser engajado, seguido, curtido e compartilhado? Nesse momento onde a desonestidade intelectual é tanta que o epistemicídio tomou novas formas, mais dissimuladas e cruéis? O que dizer do roubo de produção intelectual dos menos visíveis que aparecem sendo proferidos como novidade na boca dos mais visíveis? E os critérios são “gosto dele/a” e “não gosto dele/a”. São tempos difíceis para os intelectuais de verdade. No mundo das “fadas sensatas” é impossível ser intelectual porque só pode haver concordâncias e aclamações instantâneas. No mundo onde números de seguidores consubstancia ausência de consciência crítica não pode haver intelectual e tampouco intelectualidade.
Até Ângela Davis, produto voraz consumido em um passado não tão distante, foi esquecida. Mas ela, assim como Milton Santos, alertou que os saberes e a formação da consciência crítica não se produz só na academia. Ou seja, não basta ser mestre ou doutor para ser intelectual. Aliás, tivemos ao longo da história, brilhantes intelectuais que sequer passaram na porta da universidade. E que isso não soe como uma campanha anti acadêmica, porque sim, a universidade importa muito e cada vez mais. Mas sem a soberba racista e classista que ela cultiva ainda hoje.
E seguindo o pensamento de Milton Santos e outros grandes intelectuais da história, um intelectual não se diz como tal. Ele é reconhecido pela massa popular que o tem como guia ou luz no caminho do conhecimento do mundo que o cerca e de si próprio. O que diriam os autoproclamados intelectuais de hoje em dia para um Milton Santos que afirmou que o Brasil precisa mais de intelectuais do que de letrados?
Talvez ele diria que quebrar estereótipos, nesse Brasil de 2022, é ser como ele foi em vida: um corajoso e verdadeiro outsider (forasteiro) que rejeitava o status quo vigente e não um pseudo libertário que se esconde atrás de poder racial e econômico devidamente representado por um canudo de papel e um título limitante dado por outros iguais, para esconder as neuroses e angústias que a vaidade produz em quem insiste em se pensar superior.