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O assassinato de Tyre Nichols e o outro lado da representatividade

Diferentemente da execução de George Floyd, no caso de Nichols os cinco policiais que espancaram brutalmente o rapaz eram todos negros

31 jan 2023 - 09h15
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Pessoas se mobilizam em vigília por justiça para Tyre Nichols
Pessoas se mobilizam em vigília por justiça para Tyre Nichols
Foto: Reuters

Uma alma linda, apaixonada por skate, pôr do sol e fotografia. Assim foi descrito pela família o jovem Tyre Nichols, de 29 anos, em uma dilacerante entrevista coletiva para a imprensa norte-americana. Ele tinha um filho de apenas quatro anos e o nome da mãe tatuado em um dos braços. Inclusive, o nome da mãe foi a última palavra que ele disse quando estava sendo brutalmente espancado em uma abordagem policial covarde que o levou ao hospital, sendo que três dias depois viria a falecer. Isso ocorreu no dia sete de janeiro deste ano, em Memphis/EUA. Mas as imagens só foram veiculadas no último dia vinte e oito de janeiro e, assim como o assassinato brutal de George Floyd, chocou todo o país e provocou uma onda de protestos nas ruas da cidade.

Mas diferentemente da execução de George Floyd, que foi mais uma das infeliezes ocorrências racistas da polícia norte-americana, aqui, no caso de Nichols, há um detalhe que no mínimo merece muita atenção: os cinco policiais que espancaram brutalmente o rapaz eram todos negros. Sim, cinco homens negros. 

Podemos usar como argumento, mais do que válido, que a polícia é uma instituição que se formou a partir da necessidade racista e patriarcal de defender os frutos dos privilégios acumulados pela supremacia branca, materializados em terras e outros bens de consumo e símbolos de poder social, milimetricamente adquiridos às custas da exploração, principalmente da negritude escravizada em um determinado momento da história e, posteriormente, por explorados pobres, brancos e não brancos, inseridos nas camadas inferiores da pirâmide social desenhada pelo sistema capitalista. E isso é válido porque é um fato histórico. 

Haja vista que a condenação dos policiais negros foi imediata, sendo que todos já foram expulsos da corporação e, segundo informações reveladas apenas no dia 30 de janeiro, havia mais um envolvido, o policial Preston Hemphill, que é branco, e foi dispensado do serviço logo após o espancamento de Nichols em 7 de janeiro. Quanto tempo demorou para sair a sentença de George Floyd? E os policiais que assassinaram a Breonna Taylor? E porque o policial branco está sendo poupado? Tirem suas conclusões. 

Mas não é apenas isso que nos interessa nesse momento, pois como venho afirmando, o desempoderamento dos grupos oprimidos passa por questões subjetivas que são urgentes de compreender e envolve a responsabilidade de toda e qualquer pessoa negra. Curiosamente, no Brasil dos tabus e superficialidades intelectuais de toda ordem, esse caso não teve a repercussão que deveria. Vejam bem, se na terra do Partido dos Panteras Negras, negros estão assassinando e violentando negros, imagina aqui, no Brasil do tokenismo, do “pretos no topo” e do mito da democracia racial que fez com a proximidade das relações inter-raciais soasse como ausência de racismo? 

O fato é que esse detalhe, a cor da autoria direta do assassinato de um homem negro, peça fundamental do caso, corrobora um antigo e conhecido dito popular brasileiro: 

“Inimigos de negros são os próprios negros”. 

Infelizmente, esse ditado carrega mais verdade do que revela nossos inocentes best sellers de soluções antirracistas palatáveis. 

Certamente, Freud poderia com sua famigerada psicanálise, explicar pelos meandros do inconsciente, o auto-ódio básico de uma negritude que se formou no bojo da desumanização escravista e tem impregnado em si mais do que uma mentalidade colonial, o sentimento de auto-rejeição nascido com a colonialidade do ser (Quijano). Nossas referências máximas em psicanálise, Virgínia Bicudo e Neusa Maria Santos esboçaram essas dinâmicas brilhantemente também. 

Mas nesse caso, é mais eficiente lançar mão de outras referências teóricas, como  Paulo Freire e Milton Santos, que nos dá a dimensão sociológica do problema.

O essencial Paulo Freire, em seu clássico fundamental Pedagogia do Oprimido, nos traz o apontamento sociológico desse processo psíquico que converte oprimidos em subopressores (1). Ele alertou para a questão subjetiva das opressões que é a inevitabilidade de nos tornarmos a imagem e semelhança de quem nos oprime. E afirma categoricamente que isso inviabiliza toda e qualquer pedagogia da libertação, ou seja, isso é um entrave quase intransponível para o empoderamento (que não é um adjetivo, como erroneamente vem sendo tratado pelos ignorantes perniciosos, e sim um trabalho de resgate profundo e complexo de poder SOCIAL dos oprimidos). 

Se o racismo é estrutural e é estruturante de toda a formação da sociedade, porque a negritude estaria isenta de reproduzir suas práticas, de extravasar seu pensamento e repetir o comportamento que o caracteriza? Evidente que isso não é possível! Daí a verdade diante do ditado que afirma que inimigo de negro é negro, uma vez que qualquer pessoa que é ensinada a não se amar, vai despejar o seu auto-ódio no seu semelhante direto, no caso um outro negro, como mecanismo de defesa psíquica.

Psicanaliticamente falando, o indivíduo oprimido, recalaa em si o seu auto-ódio, mas o conteúdo recalcado não se esgota, apenas sai por outras vias, como no caso, discriminando, rejeitando ou espancando outro indivído negro, por exemplo. 

E é mais evidente ainda que essa dinâmica impacta as relações, fragilizando aquilo que deveria fortalecer, o grupo social. Nesse entremeio, todos os instrumentos de luta se tornam nocivos por serem passíveis de serem desviados de sua função social e usados como alimento para as hierarquias entre os oprimidos. Inclusive a tão importante representatividade, que há muito tempo já não serve mais aos propósitos sociopolíticos a que se destina. 

Em nome da representatividade, a negritude pode pensar que é uma boa ideia ter policiais negros. Mas se esses policiais estão terrivelmente tomados pela mentalidade e práxis dos opressores, não temos representatividade ou temos representatividade branca fantasiada de negra.

Como a luta anti-opressões tem afundado na areia movediça do discurso neoliberal, que confunde empoderamento com ascensão individual, (relativa)emancipação econômica com formação de burguesia negra e outras aberrações, temos um precipício silencioso no caminho da luta contra as desigualdades raciais. O mesmo se pode dizer sobre a luta feminista.

Nesse sentido, o gigante da geografia mundial, professor Milton Santos, já manifestava importante reflexão. Em sua última entrevista que deu para o indispensável documentário do cineasta brasileiro Sílvio Tendler, Globalização Milton Santos - O mundo global visto do lado de cá, de 2001, ele alerta para um desvio da luta antirracista negra norte-americana que pode ser considerada uma das base do caso Tyre Nichols: a guetização gourmet ou o distanciamento de negros que ascendem socialmente da sua base de origem, (que inclusive foi fundamental para sua ascensão) e da sociedade como um todo, já que um negro rico será sempre um negro, mesmo rico, mesmo que subopressor.

Para além das consequências sociais desse fenômeno, temos as consequências subjetivas, que é a crença de algumas pessoas negras na sua superioridade, em uma visível assimilação do modo hierárquico com que a branquitude se percebe na sociedade;

Eu tenho um grande medo que aqui se reproduza essa história americana de crescimento separado, quer dizer, a produção de uma classe média, de uma pequena burguesia negra, separada do resto da sociedade. Eu creio que, me dá impressão de que estamos indo nessa direção. 

Milton Santos, 2001.

Não é difícil perceber, mesmo a distância, que os negros norte-americanos assimilaram essa mentalidade supremacista adubada pelo status socioeconômico que conquistaram. Ela costuma se manifestar em discreta atitude imperialista diante de outros negros da diáspora e, mesmo entre eles, há relatos de uma luta de classes que já era prevista por grandes estudiosos do tema. Um dos maiores intelectuais negros do século passado, W. E. B. Du Bois alertou sobre isso em “The Talented Tenth”, onde fez um apelo para que a negritude em ascensão exercesse uma “liderança inteligente” e citava o lema da National Association of Colored Women’s Clubs “levantar outros enquanto subimos”, para que a divisão racial não se estabelecesse entre eles no decorrer de sua ascensão econômica. 

Infelizmente o trabalho antirracista não tem sido pensado com profundidade em algumas esferas importantes como a psíquica e a afetiva, por exemplo. Sintomas de desequilíbrios psíquicos como preterimento afetivo de mulheres negras, a reprodução do preconceito de classe social entre negros ou ainda as acirradas disputas por visibilidade mediante a exclusão e o apagamento de outros, tem sido ignoradas ou negligenciadas. E o ápice da manifestação desses sintomas pode sair completamente do campo simbólico ou discursivo e chegar ao extremo da violência. 

A sábia e inspiradora intelectual negra norte-americana bell hooks, declarou certa vez em uma entrevista que havia abandonado o termo racismo e adotado a expressão supremacia branca patriarcal capitalista e imperialista. Porque, segundo ela, já não estamos mais lidando somente com relações de poder desigual entre brancos e negros (ou não brancos). Estamos lidando com uma esfera muito mais abrangente que inclui os subprodutos das opressões de raça, classe e gênero. Uma pessoa negra ou não branca não pode ser racista, pois não tem poder social para isso. Mas pode sim pensar e a agir como um supremacista branco patriarcal capitalista e imperialista, sobretudo quando se pensa como destacado do seu grupo por ter melhorado sua condição econômica e alcançado espaços brancos e ser tratado como “igual” ou como se tivesse o mesmo poder social. É o lado da representatividade que se torna tóxico e nocivo. Lembremos Ângela Davis que disse “que não basta ocupar espaços, é preciso se certificar de que quem os ocupa vai ter força para romper com os acordos e tensionar as estruturas”. A maioria não segue essa lógica e passa a agir como a supremacia branca quer. Esse é o caso dos cinco policiais negros que assassinaram Tyre Nichols brutalmente e não dá para atribuir a responsabilidade toda às falhas sistêmicas da corporação. 

Podemos aproveitar de maneira indulgente o fato de que policiais negros absorveram o modus operandi da polícia criada para executar corpos negros para explicar casos como o assassinato de Tyre Nichols? Podemos porque é uma questão legítima. Mas precisamos saber que se assim for estaremos mascarando problemas mais profundos e urgentes que obstáculos importantes para a real emancipação negra. 

(1) https://medium.com/revista-subjetiva/as-din%C3%A2micas-das-subopress%C3%B5es-99150a68edc3

Fonte: Redação Nós
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