O que as lutas sociais devem cobrar do novo presidente
Bolsonaro foi a voz e o corpo usado para escancarar, definitivamente, a situação social do país
Em seu primeiro pronunciamento, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, foi categórico ao afirmar que irá governar para todas e todos e que haverá esforços para a conciliação de um Brasil que se mostra fragmentado. Muito nobre e esperado essa sinalização, não apenas pela necessidade do momento e pelas condições da vitória do pleito eleitoral, mas principalmente pelo histórico de governança de Lula nos outros mandatos presidenciais.
No entanto, a reconciliação da nação não depende de Lula. Depende primeiramente do entendimento de como chegamos até aqui. O atual presidente teve sim uma função histórica: descortinar o que até então era negligenciado, que é justamente essa fragmentação.
O Brasil é um país dividido desde a sua fundação. Dividido pelo racismo, pela misoginia, pelas hierarquias criadas pelo elitismo. Sempre fomos uma nação cujo ambiente é propício para hospedar o fascismo, temos um viés inconsciente (ou negligenciado) autoritário e baixa autoestima enquanto nação (o famoso viralatismo que nos leva a crer que qualquer coisa que vem de fora do país é sempre melhor).
Isso só estava camuflado pelas hipocrisias políticas, pelas demagogias culturais e pela falsa democracia racial que os poderes hegemônicos localizados no topo da hierarquia social usaram para manipular a percepção coletiva e plantar uma crença ingênua de que esses distanciamentos nunca existiram.
Após quase quatro séculos de escravidão e um pós abolição que se deu à revelia do bom senso e da senso de humanidade, como poderíamos ter um país unificado, que constrói e mantém as relações sociais lineares (de igual para igual) e não verticalizadas(Deus acima de tudo, Brasil acima de todos)?
Bolsonaro foi a voz e o corpo usado para escancarar, definitivamente, a situação social do país, pela mentalidade provinciana e o comportamento misógino e racista que sempre usou como plataforma política e/ou trampolim para sua popularidade, construída por íntima identificação de parte assustadoramente expressiva da população, independente do posicionamento político de esquerda ou de direita.
Tão logo a era Lula teve início sinalizado pelos seus programas bem intencionados e com eficiência suficiente para mudar a fachada da negritude (e de outras minorias sociais) ainda que com suas falhas e discrepâncias intimamente ligada a nosso viés assistencialista e paternalista de enxergar a política, a simples bruma de emancipação dos que sempre foram deixados à margem da sociedade, despertou um levante raivoso e indecente de uma classe média que se pensa rica e de uma elite herdeira dos acúmulos econômicos coloniais (e ilícitos) que sequer pensam em dispor dos privilégios e promover reparações históricas. Bolsonaro se tornou porta-voz ativo e competente em acirrar as fúrias antes disfarçadas dessas camadas sociais contra os servidores que sempre foram tratados como “quase da família”.
A resposta dada por Bolsonaro a pergunta sobre equidade racial na sabatina promovida pelo SBT, soou como ofensa e foi respondida com tokenização clássica no melhor estilo “não posso ser racista pois tenho amigos negros”.
A ausência de questões relacionadas às opressões que sustentam nossa sociedade como o machismo, o elitismo (ou a hierarquia de classes), mostra que as origens das desigualdades sociais do país são tabus fortíssimos e mais vivos do que nunca.
As políticas da era Lula e Dilma devem voltar com mais força. Ao menos é o que se espera de um presidente que foi eleito, principalmente, pelo esforço conjunto de uma camada social que ocupa a base da pirâmide social, apartada de todo e qualquer ação do poder público direcionada a promover equidade e restituição das cidadanias mutiladas pelas desigualdades produzidas por um sistema secular de opressões de raça, gênero e classe.
Mas, esse Lula mais sábio, safo e maduro o bastante para construir uma frente pró-democrática, onde os egos, característica básica do identitarismo branco, foram deixados todos de lado em nome de um bem maior, tirar o país das mãos de autoritários de extrema direita, precisa se empenhar em não repetir os erros do passado, que inclusive pautaram alguns dos caminhos que nos trouxeram ao caos generalizado. Um desses caminhos foi a displicência no emprego das políticas reparatórias para as minorias, que atuaram no limite entre emancipação/conscientização e paternalismo. Paulo Freire foi citado por Lula em alguns debates. E foi muito oportuno citar um dos intelectuais que mais trabalharam pela emancipação social, em um momento em que o fanatismo da extrema direita tenta depredar sua genialidade.
Mas é preciso que a alma freiriana esteja sustentando e consolidando todas as políticas públicas que serão traçadas pelo governo federal para que tenhamos uma população emancipada e consciente sobre como e porque lhe faltava (e ainda lhe falta) autonomia.
Em outras palavras, é preciso investir no empoderamento real (não distorcido pela mídia) para que esses grupos resgatem sua persona social completa e forme uma coletividade madura política, social, cognitiva e psicologicamente apta a construir para si a pedagogia da libertação, participando ativamente de cada processo e transformando a sociedade em um lugar íntegro e inteiro, sem as fragmentações históricas que são consequência das desigualdades em que vivemos.