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O que o Latino sabe sobre dignidade e que pode ser ensinado pra Anitta?

Funkeira disse que já ficou "com a metade da indústria musical" e cantor criticou em nome de todas as mulheres do Brasil

7 jun 2022 - 05h00
(atualizado às 14h35)
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"É o fim dos tempos! Não representa as mulheres dignas do Brasil! Aff", escreveu Latino sobre Anitta
"É o fim dos tempos! Não representa as mulheres dignas do Brasil! Aff", escreveu Latino sobre Anitta
Foto: Reprodução/Instagram

Sempre defendo e continuarei defendendo que CULTURA não diz respeito apenas a nossos gostos pessoais. É uma ideia autoritária e retrógrada confinar a arte em um status de qualidade definida por pequenos grupos narcisistas que só valorizam aquilo que lhes convém.

É fato que as pessoas exaltam ou desprezam algo de acordo com o nível de identificação que percebem, ou mediante o desejo de alcançar aquilo com o que se identifica. Nesse sentido, os artistas populares de hoje não são menos dignos e legítimos na arte que produzem do que os que foram consagrados no seio do academicismo ou da burguesia nacional. Anitta ou Latino não são menos nem mais relevantes que Elis Regina ou Tom Jobim. Apenas dialogam com outro tempo e outro público que não é “alienado” apenas por não se identificar com a poética caetaneante da MPB old school.

Por que digo isso? Porque não serei leviana em adentrar no mérito da produção artística dos cantores envolvidos na treta midiática da vez, embora não tenha qualquer apreço por sua música. Pouco me importa o sucesso de Anitta ou Latino, já que nesse sentido, ambos não me representam, mas, como é da obrigação moral de todo aquele que almeja ser chamado de ser humano, o meu respeito aos seus respectivos trabalhos eles têm e sempre terão.

Apesar de algumas polêmicas passadas que pesaram sobre a cantora Anitta, tais como apropriação cultural e uso indevido do feminismo para fins pessoais, polêmicas essas que foram esquecidas pelo verniz imperialista da fama internacional que agora faz com que muitos que antes a criticavam (por puro preconceito classista) se calem , é fato que a cantora, naturalmente irreverente, jamais tenha sido desrespeitosa ou agressiva com nenhuma figura pública.

Exceto, até mexer, inocentemente, no vespeiro da política nacional. Inocentemente porque as intenções parecem ser as melhores, mas o entendimento de que a política nacional é o que é porque reflete as imperfeições e debilidades da persona coletiva social, parece não estar presentes, a julgar pelas falas e posicionamentos desse expoente máximo do pop nacional. Isso abre margem para que figuras grotescas, do ponto de vista comportamental, transformem os embates políticos em banheiro químico de rua em dia de show, berrando atrocidades passivo-agressivas não só direcionada a cantora, mas a todas as mulheres.

Na última semana, ao declarar curiosidades absolutamente naturais e irrelevantes sobre sua vivência sexual, a estrela pop foi atacada por mais uma dessas figuras grotescas. Aliás, é uma prática já manjada destes, usarem figuras que estão no hype da visibilidade pública como escudo para esconder seus comportamentos ocultos questionáveis ou vergonhosos. Isso poderia ser apenas mais um embate que, no fundo, angariaria vantagens midiáticas para ambos, em maior ou menor escala.

Mas quando o cantor decadente se impõe como porta-voz de todas as mulheres, que ele define como dignas, isso merece no mínimo uma atenção especial. Primeiro é preciso perguntar o que exatamente Latino (a ironia do pseudônimo merece destaque, porque as falas tem realmente a relevância de um latido) entende sobre o conceito de dignidade. Sim, o conceito, já que por traz de toda palavra há um significado. E o significado dessa palavra, o cantor ‘latiu’ que não entende.

Dignidade vem do latin dignitá, que significa mérito, reconhecimento, honra. Digno é aquele que mantém sua retidão e trabalha seu livre-arbítrio de maneira responsável e ética, sem provocar malefícios nem a si mesmo e nem a outros. Nesse sentido, podemos afirmar seguramente que a esmagadora maioria das mulheres brasileiras, são de uma dignidade imensurável, pois aturam desde feminicídios a assédio sexual em transporte público com a mesma elegância e combatividade. Há exceções, claro. Mas lembremos que toda exceção confirma a regra. Já sobre a esmagadora maioria de ~homens~ não podemos dizer que andam esbanjando dignidade. Inclusive, aqui também, as exceções honrosas acabam confirmando a regra. A começar pelo famigerado chefe da nação que atribui merecimento a estupro e é apoiado abertamente por ele, o especialista em dignidade feminina que late.

Em o “O poderoso chefão”, clássico de Copolla que exala testosterona, mas tem grandes méritos ao expor funções essenciais do humano que as masculinidades cada vez mais delegam as mulheres, há insights importantes sobre o que seria um esboço da dignidade masculina. Como a árdua função de cuidar, no sentido mais amplo e irrestrito que essa palavra comporta, da própria família.

Somos um dos países do mundo com maiores índices de abandono parental. Homens abandonam suas crias, seja física ou simbolicamente, sob o silêncio absoluto de outros homens. O resultado é uma geração com sérios problemas de ordem emocional, já que amor e carinho, presença e atenção, rende muito mais benefícios a formação subjetiva de uma pessoa do que qualquer outra ação. Mas Latino tem 10 filhos, com mulheres diferentes. Isso é errado? Não exatamente, mas é totalmente problemático, sobretudo se pensarmos que a função de apoiar e dar suporte a filhos e filhas toma tempo suficiente de uma pessoa, a ponto de não permitir envolvimento espontâneo em futricas públicas sobre a vida alheia.

Don Corleone, o ‘poderoso chefão’, afirma que “um homem que não cuida de sua família não é um homem”. Temos então uma nação com pouquíssimos homens e entre os que sobram, Latino não estaria inserido, uma vez que até processo por falta de pensão paga para filha ele tem no currículo. E o que dizer dessa declaração:

"Ajudei até os 18 anos e depois tive que parar. Segurar a barra de 10 filhos? Não é fácil. Tive que priorizar os filhos menores. Não quer dizer que não a ajudei, ajudei muito. Prefiro acreditar que foi uma atitude impensada dela, assim poderei continuar idolatrando minha filha"

Latino é do tipo (infelizmente muito comum) que acredita que pai “ajuda”. Erro. O pai PROVÊ, o pai se dispõe a suprir todas as necessidades básicas, entre elas, o afeto positivo essencial que chamamos de AMOR. Pai dá (ou deveria dar) suporte integral ao lado da mãe, independentemente de ser ou não casado com esta. Ou seja, Latino não sabe absolutamente nada sobre dignidade ou sobre ser digno, pois, ainda que a filha que veio a público há alguns anos, reivindicar suporte financeiro, seja isolado e não represente a totalidade do tratamento dado aos outros nove filhos, qualquer pessoa que abre a boca para falar em dignidade no Brasil e não coloca no centro do debate a mesquinharia de renegar um filho/a, está sendo hipócrita.

A bunda ou as aventuras eróticas de uma estrela pop não significam nada para o bom andamento de um país, especialmente do nosso, que é marcado por profundas e estruturantes desigualdades. Se omitir ou compor o ridículo contingente de milhões de homens que se acovardam diante do desafio do pleno exercício da paternidade, sim. Ser pai e mãe ou responsável por uma criança é um trabalho, acima de tudo, político e de cunho social, além de corroborar com a instabilidade moral e emocional de mulheres e crianças.

E exatamente por isso não pode se colocar como porta-voz de mulheres que sabem o que significa ser provedora em tempo integral, seja do lar ou da própria vida, como é o caso da Anitta e milhões de brasileiras anônimas que tem que lutar como podem e com as armas que tem pela sua sobrevivência e, na maioria dos casos, de sua própria família.

Uma vida sexual variada não diz nada sobre dignidade ou mérito. Negligenciar a criação e educação de filhos/as e se acreditar que tem o poder de definir sobre a dignidade alheia sim. Chama-se falta de simancol ou pura e simples hipocrisia.

Fonte: Redação Nós
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