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São Paulo e o Urbanismo daltônico: como isso define a sua vida

Há uma questão que se destaca quando olhamos a cidade e sua formação: o racismo e o machismo estão mais presentes do que gostaríamos

6 set 2022 - 05h00
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A péssima distribuição da cidade que separou o espaço em que vivemos em Centro e Periferia, reproduz a hierarquia socioeconômica que também separa pessoas.
A péssima distribuição da cidade que separou o espaço em que vivemos em Centro e Periferia, reproduz a hierarquia socioeconômica que também separa pessoas.
Foto: iStock

“Espaços urbanos densos podem facilmente se tornar espaços conflitantes em cidades dominadas pela desigualdade e injustiça. Os grandes desastres ambientais que se aproximam em nosso futuro imediato podem levar às cidades a se tornarem locais para uma variedade de conflitos secundários e mais anômicos, como guerras às drogas e outros conflitos não urbanos que meramente usam a cidade como um espaço de implantação.”

Saskia Sassen em ‘Beyond Differences of Race,

Religion, Class: Making Urban Subjects’

Você não escuta, não percebe, porque corre de um lado para o outro resolvendo as questões urgentes da vida cotidiana. Mas a cidade fala. A cidade conta sobre ela e “ela”, a cidade, é o espaço físico onde nossas vidas acontecem. A historiadora Beatriz Nascimento disse no documentário Ori que “o corpo é nosso primeiro lugar no mundo”.

Seguindo essa lógica podemos dizer que nossa casa é nosso segundo lugar e o terceiro é a cidade. Ou podemos pensar também que a nossa casa é nosso segundo corpo e a cidade, o terceiro. Mas tudo isso significa que esses três corpos ou três lugares nos constitui, ou seja, fazem parte da nossa formação e influenciam em todas as coisas que acontecem nas nossas vidas. Sobre nosso corpo e nossa casa é fácil entender como influenciam em nossa vida, mas sobre a cidade, não é tão óbvio. Mas podemos fazer um rápido exercício para entender a profundidade da atuação na cidade sobre nossas vidas.

Elaine (nome aleatório ou pessoa fictícia) mora no bairro de Guaianazes e trabalha em Perdizes. Ela tem três filhos com idade entre 1 e 11 anos, e entra no trabalho às sete horas da manhã. Elaine só conseguiu esse trabalho porque se comprometeu com sua contratante que estaria à postos no horário, sem atrasos, para dar o café da manhã para a única filha de um casal de classe média que trabalha na Vila Mariana, que entra na creche particular que fica a 20 minutos da sua casa as 8 da manhã.

A Elaine leva cerca de 2 horas para chegar ao seu trabalho, logo, precisa sair da sua casa às cinco da manhã. Ela precisa deixar os filhos na creche pública que fica em Cidade Tiradentes, antes de ir para o trabalho. Se Elaine atrasar, a filha do casal que mora em Perdizes não vai a creche, o que obriga um dos pais a ficar com a criança em casa. Os pais são médico e dentista, o que significa que tem agendamentos para aquele dia. Sem atender os agendamentos o ônus recai sobre Elaine, afinal, os patrões poderão descontar do seu dia de trabalho. Isso é apenas um resumo generalizado da vida de milhares de trabalhadoras brasileiras. O que determina o atraso de Elaine? A má gestão do sistema de transporte público? Sim, mas também a péssima distribuição da cidade que separou o espaço em que vivemos em Centro e Periferia, reproduzindo a hierarquia socioeconômica que também separa pessoas.

Toda a infraestrutura está presente nas áreas centrais e nas periferias, sobretudo nos extremos, o que existe é abandono e precariedade. A cidade e tudo que tem nela, não é aleatório ou formado à revelia dos acontecimentos. Pelo contrário. A cidade que conhecemos, vivemos, construímos nossas histórias e desenvolvemos nossas vidas é um produto da história do país. Além disso, essa mesma cidade tem discursos “silenciosos” sendo repetidos e que estão consolidados, naturalizados no senso comum da sociedade.

Que discursos são esses: discursos segregacionistas, discursos de ódio racial, discursos contra LGBTS, aporofobia (ódio aos pobres) e de promoção de exclusões e precariedades diversas. Para se ter uma ideia da profundidade da influência da cidade em nossas vidas, podemos afirmar com base em estudos que a maneira com que a cidade está organizada afeta nossa saúde mental, agrava estados de depressão, ansiedade, etc. Sem falar na violência, que é a linguagem da imposição do poder socioeconômico atuado para conter a insurgência ou a revolta daqueles que entendem que a cidade tem muito a melhorar para garantir nosso bem-viver. 

Mas não basta levantar os problemas apenas. É preciso pensar em soluções. E a primeira delas é saber quem planeja e gerencia as cidades. Se ‘Elaines’ são as que mais sofrem com os problemas urbanos, são elas que precisam estar na dianteira do planejamento e gestão dos espaços das cidades. 

Mas há uma questão que se destaca quando olhamos a cidade e sua formação: o racismo e o machismo estão mais presentes do que gostaríamos.

O mapa da cidade, segundo dados demográficos do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, mostra que mais de 50% da população preta e parda residem nas regiões periféricas da capital paulista.

Isso significa que nossa personagem fictícia, a Elaine, é indubitavelmente uma mulher negra. Cabe ressaltar que mulheres brancas pobres também vivem essa realidade mas, as negras são em maior número e por diversas causas interseccionadas. 

O Lugar de Fala nas cidades: o que significa?

A filósofa Lélia Gonzalez foi uma das pioneiras na leitura das cidades como um espaço definido principalmente pelo racismo.

“Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupados por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são as moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo, devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento (...). Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) doas dias de hoje, o critério também tem sido o mesmo: a divisão racial do espaço.”

Apesar dessa leitura visível a qualquer pessoa de bom senso, a história do nosso urbanismo não assume que o racismo tem sido um carro-chefe na formação dos problemas que definem a vida de ‘Elaines’, não apenas em São Paulo, mas em todas as cidades do Brasil. Temos um Urbanismo daltônico, que até se afirma como social mas, não olha a cor das pessoas mais prejudicadas e, claro, não olha a cor das pessoas que planejam e decidem sobre as cidades. 

Mas quando falamos em lugar de fala não é apenas sobre o direito de falar e ser levado a sério como sujeito pensante e capaz de participar das deliberações importantes na sociedade. Estamos falando também da possibilidade de existir com plenitude e de ter assegurado o acesso a direitos já reconhecidos, como o Direito à Cidade, por exemplo. E sobre o direito de sentar nas mesas de planejadores urbanos, que organizam e gerenciam as cidades, levando demandas e questões que influenciam diretamente na organização de nossas vidas. E nosso dever de cidadão e cidadã é o de perguntar ao poder público até que ponto estamos representados nesses espaços, especialmente nesse momento onde pudemos perceber, graças a pandemia, o quanto uma cidade organizada é fundamental. 

Em São Paulo, uma das capitais mais populosas e desiguais da América Latina, quem cuida das cidades dentro do poder público é a São Paulo Urbanismo e a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento. A prefeitura de São Paulo, atualmente sob gestão do prefeito Ricardo Nunes, realizou em novembro de 2021 a I Expo Internacional Dia da Consciência Negra, ocasião em que assinou a Declaração de São Paulo Contra o Racismo Estrutural.

Isso foi histórico. Mas não abordou questões que realmente fazem com que o racismo seja definido como estrutural, como por exemplo, o acesso aos cargos de poder e decisão que existem no serviço público e são majoritariamente ocupados por homens brancos, especialmente quando falamos em planejamento urbano. É imperativo para uma gestão que firma compromisso de combate ao racismo olhar ao redor e entender onde estão as “Elaines” em todos os setores da administração pública, sobretudo na SMUL e na SP Urbanismo.

Essa é a ação primordial para termos cidades planejadas de maneira justa e realista, que tenha condições práticas de estabelecer o que é melhor para as cidades e suas especificidades, tais como mobilidade urbana, habitação, direito à cidade, diversidade, etc. E a sua parte como cidadão e cidadã não é apenas gritar “Fogo nos racistas” ou qualquer outra frase de efeito ou lacração. É acessar a Lei de Acesso à Informação (LAI) questionando toda e qualquer irregularidade, como a ausência do atendimento a Lei 15.939 de 2013 que estabelece 20% de vagas para negros (pretos e pardos) nos cargos comissionados e efetivos órgãos da administração pública direta e indireta do município de São Paulo. 

Daí a gente vai poder acreditar que São Paulo é realmente uma megalópole diversa, inclusiva e democrática para todas, todos e todes.

Fonte: Redação Nós
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