Script = https://s1.trrsf.com/update-1731943257/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Você sabe o que é gaslighting racial e como reconhecê-lo?

Fragilizar a psique de uma pessoa e/ou de um grupo social é um dos caminhos mais certeiros para se conseguir dominar e manipular

17 mai 2023 - 05h00
(atualizado em 26/10/2023 às 17h29)
Compartilhar
Exibir comentários
O gaslighting racial também com frequência está presente no local de trabalho, sobretudo em locais predominantemente brancos
O gaslighting racial também com frequência está presente no local de trabalho, sobretudo em locais predominantemente brancos
Foto: iStock/FG Trade

Embora eu não seja nada favorável ao uso de termos importados para questões de interesse coletivo e universal, como é o caso das opressões que estruturam a sociedade, vamos falar sobre gaslighting usando esse termo “emprestado” do idioma inglês tal qual se popularizou nas discussões através dos relatos na internet para descrever situações específicas de abuso psicológico, especialmente nas relações amorosas heteronormativas (ainda que haja relatos também em relacionamentos homoafetivos). 

Gaslight ao pé da letra significa “lâmpada de gás”. Isso mesmo! A famosa e vintage lamparina à gás que talvez muita gente não conheça, mas, era usada pelos nossos avós em um passado nem tão distante assim. 

Ok, mas o que lamparinas de gás têm a ver com abuso psicológico no contexto das relações amorosas? 

Estritamente nada. Mas o nome dessa prática foi inspirada em um filme homônimo de 1944, um suspense psicológico norte-americano, dirigido por George Cukor e estrelado por Charles Boyer e Ingrid Bergman, uma das divas da era de ouro de Hollywood. No filme “Gaslight” (em português “À meia-luz"), uma moça frágil, solitária e rica, se casa com um homem mal intencionado que quer se apoderar de sua fortuna. Para isso ele passa a usar diversas práticas para fazê-la acreditar que está perdendo sua sanidade mental e ficando “louca”. Um dos truques que ele usa é manipular a lamparina a gás ou a gaslight para que acenda e apague sem que ninguém tenha tocado, entre outras coisas. 

Obviamente esse thriller psicológico é uma ficção, mas se tornou um clássico da sétima arte e, por isso, serviu para nomear esse tipo de abuso psicológico altamente nocivo que é muito comum nas relações heteronormativa, especialmente quando as hierarquias são colocadas à prova.

Se por um lado o feminismo abriu e estendeu essa definição de abuso para um número grande de mulheres, que passaram a entender exatamente o que acontecia com elas nas relações amorosas que se tornavam ninho de dor e sofrimento após certo período, por outro não podemos dizer que ele é específico do feminismo. Ao contrário, ele pode fazer parte das relações humanas nas mais variadas situações, como família, amizades e área de trabalho, e é definido por um conjunto de práticas comportamentais que compõem um quadro de violência psicológica. 

Bom, fragilizar a psique de uma pessoa e/ou de um grupo social é um dos caminhos mais certeiros para se conseguir dominar e manipular. E isso foi e ainda é usado à exaustão pelos sistemas de opressão, seja racial, de gênero ou de classe social. 

Em casos de gaslighting, a vítima sabe que há algo de errado, mas duvida de si mesma e é conduzida de maneira muito sutil e dúbia a acreditar excessivamente no agressor, a ponto de não entender que está sendo manipulada e violentada. 

Como o gaslighting funciona?

De maneira genérica e abrangente, primeiro o abusador atua como um facilitador do desenvolvimento da dependência emocional na vítima, isolando-a de todo e qualquer convívio social e/ou familiar para mantê-la em contato apenas com ele. Depois a faz acreditar que só pode contar com o agressor, para então começar um festival de desqualificação e descredibilização da vítima através de críticas destrutivas, desdém, frieza, deboche, entre outras atitudes que aniquilam a autoestima e a autoconfiança gradativamente. 

Outra modalidade de gaslighting: a racial

Como disse acima, estamos falando de abuso e violência psicológica e isso não está restrito ao contexto das relações românticas e menos ainda ao rol de atitudes que compõem a masculinidade tóxica. Também é comum estar em práticas inerentes às opressões sociais, pois todo e qualquer abuso tem como objetivo obter privilégios e manter hierarquias, seja humana, de gênero, de classe ou de raça. E é desse gaslighting, o racial, que não se fala e passa despercebido como um dos principais caminhos de adoecimento mental da população negra. 

O gaslighting racial  é uma forma de manipulação psicológica que faz as pessoas negras e/ou não brancas questionarem suas próprias experiências e vivências de racismo nas mais diversas situações. E assim como se vale do lastro histórico que vincula mulheres à loucura para traçar um percurso, também usa esse mesmo elemento para descredibilizar a experiência e sofrimento negro diante do racismo sofrido sistematicamente.

A democracia racial ou o negacionismo institucionalizado que ela representa, por exemplo, é um gaslighting racial que foi praticado ao longo do tempo, adoecendo tanto a população negra brasileira, que muitos se desconectaram dos poucos elementos que comprovam sua origem. Toda forma de negação da existência do racismo como um dos pilares de formação da sociedade brasileira é um gaslighting e abuso psicológico, que leva a pessoa negra a duvidar de toda uma luta ancestral por emancipação. Mas há outras formas de gaslighting racial atuando no cotidiano da população negra. 

O gaslighting racial também com frequência está presente no local de trabalho, sobretudo em locais predominantemente brancos. E tem viés de gênero pois, com mulheres negras se dá pela descredibilização de seus saberes e negação das qualificações, dúvidas com relação a conduta e cobranças infundadas ou feitas especificamente sobre ela. 

Esse tipo de gaslighting também está presente em iniciativas pretensamente proclamadas como ações em prol da diversidade, mas que são desconectadas de qualquer consideração das experiências em grupo, focando na experiência individual conveniente (e muitas vezes conivente) que acabam não abordando questões reais e necessárias, bem como nas iniciativas que de maneira oculta está trabalhando mais pelo desejo de pessoas brancas não parecerem abertamente que são racistas do que, de fato, com algo pró inclusão. 

É preciso entender que o gaslighting sempre acontece quando as relações são desiguais e há uma hierarquia estabelecida em jogo. Homens praticam gaslighting contra mulheres, pessoas brancas praticam gaslighting contra pessoas negras e/ou não brancas, heteronormativos praticam gaslighting contra homoafetivos e LGBTQIA+, etc. E o objetivo, consciente ou não, é único: o domínio psíquico do subordinado através do aniquilamento de sua autoestima, autoconfiança, discernimento, estabilidade emocional e poder de decisão. Ou seja, o cenário humano perfeito, o solo fértil para todo e qualquer tipo de manipulação, que garante a manutenção de privilégios. 

Uma das práticas mais usadas de gaslighting racial é o policiamento do tom de voz e da expressividade usada para se opor ou se defender do racismo. O estereótipo da “negra raivosa” é gaslighting racial mais evocado na sociedade, empatado com o estereótipo do “homem negro ameaçador”. Se uma pessoa se sente discriminada, lesada, ofendida, isso constitui em uma agressão, não importa a intensidade. 

Toda ação gera reação igual ou proporcional. Então, por que o agressivo, o raivoso ou ameaçador é sempre a vítima? Porque o gaslighting a faz acreditar que sua reação é exagerada ou desproporcional, o que leva a vítima a mudar de tom ou suavizar sua reação, até fazer parecer que não foi tão grave assim. 

Só que estamos falando de práticas racistas subjetivas, que ferem e matam tanto quanto as práticas objetivas, mas de maneira silenciosa. Isolamento ou desdém também entram nas práticas recorrentes de gaslighting racial e consiste em preterir indivíduos negros que se rebelam contra o racismo de maneira contundente ou incisiva, enquanto “premia” socialmente os indivíduos negros que “sabem lutar pela causa da maneira certa”, sendo que a maneira certa de lutar, nesse caso, é negligenciando os racismo que sofre ou não sendo incômodo nas críticas e apontamentos sobre ações racistas. 

De qualquer forma, o gaslighting racial visa, além de dominar e manipular indivíduos negros para manutenção de privilégios sociais, se safar da responsabilidade sobre as microviolências racistas que utiliza ou da pecha de racista, o que impacta a visão de indivíduos brancos sobre si mesmos de maneira negativa. 

O gaslighting, em qualquer modalidade, é cruel e deixa marcas profundas, preparando as condições que levam ao adoecimento de pessoas. Quando ele é praticado no âmbito das opressões sociais, ele é tão fatal quanto o genocídio.

Fonte: Redação Nós
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade