A quem incomoda uma catadora de recicláveis viajar para Europa?
As Alines Sousas do Brasil deveriam ter acesso não só a viagens internacionais, mas como a todos os outros confortos desfrutados pelas elite
Quem me acompanha semanalmente por aqui vai lembrar que meu último texto foi sobre a representatividade necessária de termos uma mulher negra, catadora de recicláveis, colocando a faixa presidencial no Lulinha. Pois bem, como sabemos que o racismo e a misoginia não tiram férias, com a posse ainda rolando, foram vasculhar a vida dessa trabalhadora. Ao saberem que ela tinha viajado para Itália começaram a atacá-la, fazendo piadas sobre como ela conseguiu ir à Europa, sobre sua profissão, entre outras coisas. Aline teve que explicar que a viagem não foi paga por ela, e sim por várias instituições com objetivo de implantar o sistema Lixo Zero aqui no Brasil.
Se engana quem pensa que esse incômodo é algo pontual. Na minha leitura, a classe média, que também faz parte do proletariado, embebida pelos anseios da elite, já vem agindo dessa forma há algum tempo. Esse tipo de comportamento já foi representado por “hoje qualquer um anda de avião”, “o filho da empregada tá estudando com o Enzo” e, principalmente, todos os comentários maliciosos que surgiram com os direitos das empregadas domésticas. Se olharmos para esse cenário de maneira mais direta, o que está sendo dito é: “droga! o preto e o pobre estão acessando meus pequenos privilégios, enquanto eu não estou ascendendo e alcançando a burguesia”.
Não por coincidência, quem começou a dar um mínimo de dignidade ao povo no Brasil foi o governo Lula e, não por acaso, foi a presidenta da Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis do Distrito Federal, Aline Sousa, a colocar a faixa no Lula representando o povo.
Essa perseguição a Aline não foi uma questão apenas política. Desde sempre, a parcela da população mais empobrecida é alvo dos descontentamentos de outros ao receberem o mínimo. Ainda que a Aline tivesse ido para Itália a passeio, desfrutar da culinária e fazer a coisa mais cafona do mundo, que é tirar foto segurando a torre de pisa, não deveria causar comentários negativos. O quão desconfortável deve ter sido para ela ter que ir a público dizer que foi a trabalho e que não gastou um centavo.
Esse tipo de 'hate' dá a entender, pelo menos a mim, que o corpo da Aline não é digno de uma viagem a Europa, que ela, que trabalha há não sei quantos anos, não pode fazer uma viagem internacional, que, em tese, o corpo que merece ter esse acesso é branco e jamais periférico. Quando eu reflito e afirmo que o Brasil vive um apartheid, é exatamente disso que eu falo. A gente tem um corpo e uma classe que a gente aceita determinados comportamentos, a gente sabe qual CEP tem pessoas brancas e pessoas negras, a gente sabe a cor do grande empresário e a cor do gari, nós sabemos quem está cursando medicina e quem está lutando para ter transporte para concluir o ensino fundamental e sabemos também quem lidera os índices de trabalhos análogos a escravização e quem tem o privilégio de só trabalhar após a conclusão dos estudos.
Enquanto vivermos no país em que uma mulher preta trabalhadora ir a Europa causar mais espanto do que a apreensão de um helicóptero com 450kg de cocaína ou do que avião da comitiva do ex-presidente estar transportando cocaína, estaremos fadados a viver em um país que mitiga a mão de obra trabalhadora enquanto aceita os absurdos causados por uma elite que não representa em nada a população nacional.
Devemos pensar, com muita brevidade, que país queremos para nossos filhos e filhas. O país em que todos têm acesso a viagens internacionais, e não só ao básico, que também não temos, como saúde, educação e segurança, ou o país focado em privilegiar uma minoria enquanto esmaga o todo que mantém esse país de pé.