Absolvição do youtuber Júlio Cocielo pelo crime de racismo pode ser alicerce para fraude de cotas raciais
Júlio Cocielo poderia ser sido absolvido sem necessariamente ser considerado negro, como o juiz declarou. Isso me deixa muito preocupado
Para quem não sabe, Júlio Cocielo é um cara que eu consumi quando mais jovem. Eu não tenho nada contra ele. Ele acabou sendo processado, recentemente, pelo Ministério Público Federal. O que deu início ao processo contra o youtuber foi uma postagem onde ele escreveu “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein" em 2018. Pelo que me lembro, Cocielo apagou o post após alguns seguidores apontarem o racismo embutido em sua fala. O MPF identificou nove vezes em que Cocielo teria incorrido na prática de preconceito racial na rede.
Seguindo na sinceridade, confesso que não me alarmou a absolvição dele anunciada essa semana. Mas dizer que “não há nada nos autos que denote que o acusado, cuja família é afrodescendente, tenha tido a intenção de fazer piada com o intuito deliberado de atingir a comunidade negra (da qual faz parte, inclusive)", dita por um juiz federal me preocupa como a Justiça enxerga a questão racial- e como isso pode se desdobrar futuramente.
A mãe de Cocielo é uma mulher negra, que batalhou muito para criá-lo. Foi mãe solo e fez de tudo para dar o melhor para suas crias. Foi mais uma mãe preta pobre que se desdobrou e dedicou sua vida para criar bem sua prole. Máximo respeito a ela. Contudo, não podemos mais cair nas armadilhas de que ter pai, mãe, avó, avô e papagaio negro na familia faz de alguém negro.
Vamos para um exemplo prático: a filha de Gilberto Gil, Bela Gil, é uma mulher negra. Convido você a parar aqui e pesquisar sobre Bela Gil e sua filha, e depois peço para que me responda se tem alguma chance daquela linda garotinha ser considerada negra.
Agora, imagine que lá no futuro uma pessoa com a mesma bagagem que ela coloque durante uma prova de vestibular ou concurso que é negra, passe usando a cota, seja barrada pelo fenótipo, processe quem a desconsiderou negra, justificando que sua mãe é negra e usando esse processo do Cocielo como base jurídica para validar que pessoas com pais negros já fora consideradas negras juridicamente? Eu não entendo nada dessa área, mas acredito que não deixa de ser uma brecha a ser explorada.
Não tem como falar desse assunto sem falar sobre colorismo branco e pardo no Brasil e sobre como a geografia impacta algumas interpretações. O branco brasileiro goza de privilégios e, para gozar desses privilégios, ele não precisa parecer com um nórdico, sobretudo se esse branco não viver no Sul do país.
Fato é que muito desses brancos que não têm aquela aparência europeia, por vezes, ao se depararem com as cotas, rapidamente se esquecem de todos os privilégios que gozaram durante a vida e correm para se declararem pardo, justamente por terem um acestral negro na familia. Muitos desse conseguiram se formar em universidades, outros foram pegos, mas muitos ainda seguem arrumando brecha para fraudar cotas.
E ainda tem aqueles com coragem de abrir a boca para dizer que nos EUA ou na Europa ninguém os via como branco, ignorando totalmente a xenofobia inclusa nessa exclusão por parte dos estrangeiros e também o fato de que a leitura racial do Brasil é bem diferente do boa parte do mundo, sobretudo nos Estados Unidos.
Concordo que falta popularizar no Brasil o que é ser pardo. Acredito também que tem pessoas com critérios diferentes para dizer o que é ser pardo no Brasil.
Primeiro ponto a se pensar é que não existem só brancos e negros no Brasil, temos indígenas, população ribeirinha e etc. Mas, dentro da negritude, quero dizer mais ou menos como eu separo preto, pardo, preto de pele clara, preto retinto e todas as pessoas dentro do que é ser negro no Brasil. Eu, por exemplo, como vocês podem ver em fotos, não sou um preto retinto como o ator Lázaro Ramos, mas não sou preto de pele clara como o cantor Mano Brown. Estou entre eles, o que nos EUA chamam de "brown skin", que é a pele marrom.
Já pessoas parda eu considero pessoas como a Bella Campos, que é o tipo que claramente não é branca, mas não tem nenhum traço negro muito marcante seja cor da pele, cabelo, nariz e etc. Essa é apenas a minha opinião. É como eu, que moro em Salvador, enxergo, mas se você perguntar para alguém de Santa Catarina a visão dela pode ser totalmente diferente e achar a Bella "brown skin".
Aqui mesmo em Salvador, que é um lugar bastante preto, pode ter pessoas que pensem que a Bella Campos é branca e cada região vai ter suas individualidades sobre esse tema, mas nenhum lugar pessoas vão te tratar como negro ou branco baseado na sua árvore geneológica, o que conta mesmo para o racismo brasileiro é o que as pessoas estão enxergando na sua frente.
Fato é que mais do que as asneiras ditas por Cocielo e sua absolvição, me preocupa o motivo dela e como isso pode tirar gente preta de verdade das universidades e concursos públicos. Como as cotas podem ser usadas para alimentar o que ela nasceu para combater, que é a desigualdade racial no Brasil.
Quando falo que precisamos de mais pessoas antirracistas ocupando espaços, principalmente pessoas antirracistas e negras, é pensando em casos como esse que não só no desrespeitam pontualmente, como podem tirar nossos acesso no futuro dificultando ainda mais que cheguemos em espaços que historicamente foram construídos para nos excluir.