Caso da mulher negra escravizada que voltou para casa dos patrões mostra julgamentos cruéis sobre a vítima
Muita gente se chocou com fato da senhora ter “escolhido” voltar para casa de onde foi resgatada, mas será que ela conhece outra realidade?
Para quem não sabe dessa triste história, Sônia Maria de Jesus foi mantida, segundo investigações da polícia federal, em situação análoga à escravidão domestica por quase 40 anos. Seu algoz é um desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina chamado Jorge Luiz Borba. Dona Sônia é uma mulher negra e surda que foi libertada dessa situação em junho deste ano. Mas, agora, graças ao ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça, o desembargador e a sua mulher, Ana Cristina Gayotto Borba, puderam levar a vítima de volta para sua casa. Foi permitido que ela voltasse à residência do casal.
“Não consta do processo e tampouco há notícia da existência de manifestações técnicas especializadas a respeito da capacidade intelectual da paciente (a empregada doméstica), no sentido de que a mesma seria privada de discernimento”, argumentou o ministro do Supremo. Em outro trecho da decisão, Mendonça disse ainda que não via na decisão do Superior Tribunal de Justiça “risco” à empregada, como apelou a Defensoria Pública.
Esse caso é bem semelhante a todos os outros de mulheres negras em situações análogas à escravização em ambiente doméstico. Os “patrões” negam as acusações, dizem que a vítima foi criada como filha, inclusive a ação que eles entraram foi para que ela fosse restituída ao seu convívio familiar. E aí, aqueles questionamentos sempre voltam. Considerada uma filha, terá direito a herança? Considerada uma filha, mas teve os mesmos acessos dos filhos biológicos? Considerada uma filha, mas os outros filhos também faziam trabalhos domésticos? Considerada uma filha, mas os afetos trocados eram de fato de pai e mãe? Considerada uma filha, mas a mãe biologica da Sônia morreu sem reecontrar a filha?
São muitas questões, mas que, na verdade, nem são o foco do que me motivou a falar sobre essa situação. Muita gente nas redes sociais ficou chocada com o fato da senhora ter “escolhido” voltar para a casa de onde ela foi resgatada, porém poucos desses se fazem as perguntas que realmente deveriam ser feitas. Como ela iria se sustentar após 40 anos nessas condições? Quem iria acolhê-la fora ONGs ou abrigos? Confirmando a situação análoga à escravidão, será que essa senhora está sofrendo da Síndrome de Estocolmo? Qual a dependência emocional que essa senhora tem por essa família? Será que ela conhece outras formas de amor e relações?
Esse caso me fez refletir também sobre como, logo após a abolição, alguns ex-escravizados podem ter ficado sem rumo. É triste pensar isso, mas apesar de toda miséria da escravidão africana, os escravizados tinham onde dormir, comer e morar e, após a abolição, eles perderam tudo isso. Não houve reforma agrária, não houve subsídios do Estado para que essas pessoas fossem inseridas na sociedade, não houve um movimento para que pessoas negras se tornassem cidadãs. Muito pelo contrário, o que ocorreu foi a criança de leis para que pessoas negras não pudessem ter terras, que não pudessem ir a colégios e ainda foi criada a lei da vadiagem, que foi um mecanismo para encarcerar pessoas negras e as mandarem para longe dos grandes centros.
O que estou tentando dizer é que, para quem não tem nada, o resto, às vezes, parece banquete. É muito fácil se espantar com a decisão da Dona Sônia sem nem sequer se colocar no lugar de uma pessoa que viveu a vida inteira naquela realidade, e que, possivelmente, não tem outra perspectiva senão aquela. Talvez se o Estado ao invés de autorizar o retorno da suposta vítima ao local do resgate, tivesse exigido que o casal investigado arcasse com todas as demandas da Dona Sônia, como dinheiro, saúde mental e física, moradia entre outras coisas que eles certamente fariam se fossem os filhos deles, as coisas tivessem tido outro rumo. Mas julgar a senhora que, talvez, não tenha conhecido outra vida senão a cercada por essas pessoas, é tentar colocar a culpa na própria vítima. Entrar na internet e ver comentários como “Foi escolha dela, da mulher. Ou pra você ela não tem capacidade cognitiva pra tomar decisões?” só mostra como algumas pessoas não têm empatia quando o corpo exposto é negro.