Corpo das mulheres negras ainda é tratado como público e descartável
Discriminação de gênero se agrava para as mulheres negras e datas como a de hoje são importantes para pensar essas particularidades
No Brasil as discriminações de gênero ganham tons muito mais dramáticos para as mulheres negras. Por isso, datas como a de hoje - Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha - são importantes para celebrar e pensar nas particularidades das mulheres pretas. O corpo das mulheres negras quase sempre foi, e ainda é, tratado como público e descartável, isso não é só questão de gênero, de raça ou de classe, mas de todas elas juntas. É o que a socióloga e autora Patricia Hill Collins chama de "imagens de controle", ideias que são aplicadas às mulheres negras e que permitem que outras pessoas as tratem de determinada maneira.
Essas ideias vão na contramão do que o patriarcado construiu em torno da mulher branca. Por exemplo, enquanto a mulher branca é vista como frágil, a negra é vista como raivosa. A ideia da mulher casta é, majoritariamente, direcionada para mulheres brancas, muito diferente de mulheres negras, que tem seus corpos hiperssexualizados. As mulheres brancas, sobretudo as ricas, têm a possibilidade de gozar de uma “gentileza”, ainda que opressora, do patriarcado, “privilégio” esse que pretas jamais tiveram, muito pelo contrário, mulheres pretas sempre foram expostas ao trabalho infantil, já eram chefas família e muitas vezes iam trabalhar na casa de mulheres brancas, cuidar dos filhos delas, possibilitando assim que essa mulher branca “desfrutasse” da cordialidade de patriarcado.
Resolvi então trazer alguns dados que podem ajudar na compreensão dessa diferença de tratamento estrutural que há entre as mulheres negras e brancas. O aborto, por exemplo, segundo o IBGE, Ministério da Saúde, Instituto de Medicina Social da UFRJ e a Fundação Oswaldo Cruz, tem na raça um marcador muito cruel. Uma mulher negra tem 2,5x mais chances de ser uma vítima fatal de um aborto do que uma mulher branca, também são, segundo a doutora Fernanda Lopes, as que mais morrem em decorrência da gestação, mesmo controlando variáveis como a questão de classe.
A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres brasileiras, no entanto, os números são ainda maiores quando há um recorte racial. Mulheres negras têm mais chances de terem atendimento negado, são as que mais demoraram para encontrar uma maternidade para parir, são as mais impedidas de ter acompanhante durante o parto, não recebem anestesia para alívio da dor e ouvem diferentes agressões verbais. Muitas dessas violências são legitimadas por mitos racistas que pairam sobre a área da saúde como o de que pessoas negras são mais resistentes a dor.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61% das vítimas de feminicídio são de mulheres negras. A pesquisadora Jackeline Aparecida Romio identificou que o feminicídio estava crescendo entre as mulheres negras e indígenas, embora estivesse diminuindo entre as mulheres brancas. Já o Atlas da Violência nos mostra que morrem 13 mulheres assassinadas por dia no Brasil, dessas 13, 8 são negras e 5 não negras. O aumento do homicídio feminino, em números absolutos, entre 2007 e 2017, aumentou 60,5% entre negras e 1,7% entre não negras.
No mercado de trabalho as desigualdades raciais se mantêm. As mulheres negras são a maioria das desempregadas, a maioria em subempregos, a maioria no mercado informal e, segundo a PNAD, são o dobro que têm trabalhos domésticos como ocupação. Com todas essas diferenças o resultado não poderia ser outro, o rendimento mensal de uma mulher branca é de R$2.529, enquanto o da mulher negra é de apenas R$1.476. Pessoas brancas recebem 45% a mais que pessoas negras, mesmo ambos os grupos tendo nível superior.
O LNIP constatou que de 2000 a 2014, a população carcerária feminina no Brasil cresceu 567%, se tornando assim, a quarta maior do mundo, e que 68% dessas mulheres enfrentando a prisão, a invisibilidade e a justiça seletiva são negras.
O racismo, o machismo e a pobreza juntos fazem com que mulheres negras e periféricas vivenciem no seu cotidiano formas ímpares de violências. A mulher branca, com alguma frequência, passa por problemas ao denunciar as violências causadas por seus pares, diversas vezes são desacreditadas e tem as suas denúncias negligenciadas. Agora imaginem a mulher negra da favela, chamando a polícia para intervir em uma violência doméstica no meio da madrugada dentro da periferia.
Quando dialogamos sobre questões sociais devemos pensar em todas, todos e todes, e não só no que nos atravessa e, ao meu ver, a única maneira de se ter uma sociedade mais justa é colocando os indivíduos com mais atravessamentos no centro das análises.