Descriminalização do porte de drogas para uso pessoal é um golpe na lógica eugenista brasileira
É urgente que a Justiça brasileira entenda as nuances das políticas punitivistas e como elas matam sistematicamente jovens negros
Quero começar minha coluna te colocando para pensar: o que vc acha que o BBB24 tem a ver com descriminalização das drogas? Muitos de vocês podem pensar que estou delirando, mas o reality da TV Globo tem muito a ver com esse assunto que, nesta quinta-feira, 6, vai fazer parte das rodas de conversas aqui no Brasil: a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, que será discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E sabe por que penso assim? Porque muita gente esquece que várias mazelas sociais são protagonizadas por homens negros cisgêneros.
Nem vou citar todas aqui para não me prolongar, porém o que vemos na casa do BBB24 hoje é um jovem negro de 21 anos, que já passou fome, batendo de frente com mulheres brancas e ricas que não estão acostumadas com pessoas como ele sem ser as servindo. O Davi subverte a lógica do sistema dentro e fora da casa.
Ele está vivo dentro do maior produto da maior rede de televisão do Brasil com a cor que ele tem, com gênero que ele tem e com a idade que ele tem. É quase um milagre. Milagre porque pessoas com essas características são mortas e encarceradas diariamente. E muitas delas por causa da política antidrogas do Brasil.
Para quem não sabe, a eugenia foi um movimento adotado pelo estado brasileiro que dizia que pessoas negras eram inferiores e que, para o Brasil se tornar uma nação digna, havia a urgência em embranquecer sua população. Para isso, várias estratégias foram colocadas à mesa e uma das sugestões envolvia até castração química. Até onde sabemos, essas ideias mais radicais não foram adiante, mas se você sentar e analisar que a população negra é a que lidera os índices de mazelas no Brasil, rapidamente perceberá que o projeto ainda está em curso.
Exagero da minha parte? Repare na cor da mulher que mais morre por aborto, procura quem são as mulheres que mais são vítimas de violência obstétrica. Acha pouco? Procure saber sobre a taxa de mortalidade infantil e adivinhe a cor de quem a lidera. Por fim, busque qual a cor das pessoas que mais morrem e são encarcerradas na “luta” contra as drogas.
A descriminalização da droga já existe em alguns setores da sociedade. Você realmente duvida disso? E, diferente do que muitos dizem, a gente não precisa ir até Alphaville, bairro nobre de dois municípios da grande São Paulo, para dizer que a polícia não entra lá para bater em morador que usa droga, não. Em condomínio de classe média, que do ponto de vista estrutural não deixa de ser pobre, a polícia não arromba porta para dar tapa na cara de ninguém. Coisas como essas, infelizmente, são corriqueiras dentro da favela. Favela essa que tem, em sua maioria, moradores negros e empobrecidos. É lá que um "fininho" tem feito adolescentes serem mortos pelo Estado. É lá que a bala “perdida” acerta trabalhador. É lá também que a brutalidade policial se faz mais presente.
Em São Paulo, pessoas negras são a maioria condenada por tráfico de drogas e com menor porte. Isso quer dizer que, hipoteticamente falando, se cinco brancos e cinco negros foram presos com 10 gramas de maconha, desse grupo quatro negros foram condenados e apenas dois brancos tiveram o mesmo destino. Tem outros pontos que precisamos falar como, por exemplo, que jovens negros são a maioria nas prisões com baixos índices de provas, algumas dessas nem sequer apreenderam a substância ilícita. Tem muitos outros dados nesse sentido que comprovam como essa lógica falida contra as drogas condena negros ao cárcere e à morte.
Enquanto houver brecha jurídica validando determinados tipos de comportamento do Estado, veremos os índices do genocídio da população negra cada vez maiores. Por isso a necessidade do STF aprovar a descriminalização. Porque, talvez, isso sendo feito veremos menos flagrantes forjados, menos jovens negros sendo abordados e agredidos, menos incursões dentro da favela, que acabam em morte não só de moradores e de traficantes, mas também de policiais, que são negros, em sua maioria, e que boa parte tem origem periférica.
E até nisso o sistema é perfeito. No final são negros matando negros, para que a burguesia branca siga enchendo seus bolsos de dinheiro, inclusive com contravenção. Vocês nunca pararam para pensar em como essa droga entra no país, atravessa dezenas de fronteiras até chegar na favela? Se todo o dinheiro investido na luta contra as drogas dosse investido em educação e saúde, muitos dos nossos problemas seriam sanados sem precisar de violência e morte.