Desfile da Vai-Vai: policiais são demônios na favela e cordeiros em Alphaville
Carro alegórico com policiais demônios traz perspectiva de quem vive na periferia, pois é lá que alguns agentes agem como seres demoníacos
A escola de samba que mais venceu no Carnaval de São Paulo, a Vai-Vai, desfilou no último sábado, 10, e um dos carros alegóricos trazia policiais vestidos como demônios. Isso gerou muitos comentários. Enquanto muitos entendiam perfeitamente a mensagem da Vai-Vai e aplaudiam a forma como a crítica foi feita, outros, que acredito que também entenderam, não curtiram muito e fizeram nota de repúdio à escola de samba.
Fato é que quando alguma nomenclatura, principalmente cristã, é atribuída a um indivíduo ou grupo, como demônio, santo ou cordeiro, entre outras, ela é proferida na perspectiva das vivências de quem pensou o carro alegórico. Entender a construção dessa visão é muito simples. O Carnaval é uma festa com elementos negros, elementos esses que sempre foram demonizados no Brasil e que têm, historicamente, a polícia como um braço forte de repressão.
Quando eu falo que o Carnaval é negro, eu falo em essência. Eu sei muito bem como parte da branquitude se infiltra, rouba, esvazia e monetiza vários elementos de origem africana, mas também sei que tem muitas pessoas negras resistindo e não permitindo que a cultura seja perdida.
O que é o demônio cristão? No meu entendimento, o demônio é a síntese de tudo que é ruim e mau. E o ser bom ou ser mau nada mais é do que perspectiva, certo? O policial que entra na favela e esculacha a população procurando alguma coisa que talvez nem exista, para essa população ele é o quê? Bom? Já para quem está em Alphaville, aquele bairro nobre dos municípios de Barueri e Santana de Parnaíba, em São Paulo, o policial que ajuda a carregar as compras, está sempre com sorriso no rosto, dá bom dia, nem mostra a arma e está cumprindo seu papel, que é servir e proteger, é óbvio que a polícia é divina.
Pensem comigo: quantas vezes vimos filmagem de policiais sendo filmados dando "geral" em pessoas pretas e periféricas? Agora, pense que quando é em Alphaville são eles (a polícia) que filmam quando são esculachados pelos brancos e ricos. Ou seja, em uma perspectiva ele é o demônio, mas na outra ele é cordeiro.
Vamos para um exemplo usando o próprio Carnaval. Trazendo para a realidade de Salvador, quantos vídeos de policiais batendo em pessoas na pipoca já cansamos de ver por aí? E a troco de nada, simplesmente para abrir espaço para passagem. Mas nada disso se vê em camarote, né? Fica a pergunta: onde está o branco rico e onde está o preto pobre? Onde uma pessoa pode se mostrar e ser hostil com a certeza da impunidade?
Fico impressionado como as pessoas não respeitam a cultura preta, sobretudo periférica. Cantar a realidade virou crime para alguns. Era muito lindo ver Tom Jobim, um tijucano, que fez Medicina na Europa, cantando sua realidade, relatando as belezas do Rio de Janeiro e outras sutilezas. Entretanto, é erradíssimo quando Mano Brown escreve sobre o dia a dia da comunidade, onde a polícia era hostil. A realidade cantada só é válida quando atende aos anseios de uma parte da população que acha que é o termômetro das produções culturais do Brasil.
A polícia e o Estado deveriam correr atrás de entender o porquê o policial é visto como demônio, o que pode ser feito para mudar essa imagem e por quem ele é visto como demônio ao invés de repreender artistas que estão expressando o que vivem e sentem.
Não quer ser visto como demônio? É só não agir como um. Ou vocês realmente acham que para aquela família da Baixada Santista que viu um policial atirar à queima roupa duas vezes em seu parente desarmado, a polícia é algo bom? Ou para a família da Claúdia da Silva Ferreira, que a viu sendo arrastada de uma viatura, a polícia é boa referência? Ou quem sabe aquela jovem de apenas 18 anos que foi estuprada por três policiais militares dentro de uma viatura no Rio, deva amar a PM?
Enquanto a polícia não respeitar o pobre da mesma forma que respeita o rico, a produção cultural de quem sofre na mão de policiais será a demonização da organização. E se eles querem que isso pare de acontecer, não tem que escrever nota de repúdio, não. Eles deveriam é mudar a lógica racista e burguesa de como aplicam a força e a ordem dentro dos espaços mais empobrecidos da nossa sociedade.