O descarte de um homem negro amputado não é um simples erro
O racismo valida as agressões aos corpos negros, enquanto pune o elo mais fraco da estrutura racista
Na última segunda-feira, 10, no Rio de Janeiro, um homem negro com as duas pernas amputadas, de sonda e fralda recebeu alta do Hospital Municipal Dom Pedro II. Após membros do hospital não conseguirem o contato da família, o senhor Bernardo foi descartado pelos maqueiros na calçada próximo ao hospital e ficou lá por três horas sem assistência. Ele contou ainda que a assistente social o informou que não poderia fazer mais nada e que ele precisava sair para que outros pacientes ocupassem o leito. Depois de toda repercussão que o caso teve, a Secretária Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou que não é dessa forma que a unidade age e que iria apurar os fatos, mas que, por hora, alguns funcionários seriam responsabilizados.
Já está repetitivo falar que o Brasil é um país extremamente racista e que as pessoas negras são vistas como descartáveis não só por serem negras, mas também por, na maioria das vezes, serem pobres. Esse descarte é em todas as esferas, mas na saúde ele ganha, ao meu ver, um requinte de crueldade já que é um ambiente pensado para salvar vidas e não para ignorá-las. Não, esse não é um caso isolado.
Para vocês terem ideia do que falo, mulheres negras são 65% das mortes maternas no Brasil e, muitas vezes, suas crias vão junto. Isso tem vários motivos e um deles é que 81% das gestantes brancas realizam, pelo menos, sete consultas de pré-natal enquanto negras correspondem a 68%. Até um ano de vida, crianças negras têm 22,5% de chance de morrer a mais do que uma criança branca. Por fim, segundo a Fundação Abrinq, 70% das mortes de crianças negras foram por causas que poderiam ser evitadas.
Alguns dados são importantes para que as pessoas entendam que não é "achismo". De fato, a população negra é menos assistida do que a branca, ainda que façam parte da mesma classe social. O caso acima é mais um reflexo de toda essa estrutura formada para desumanizar pessoas negras. Pois essa é uma das facetas do racismo: remover a humanidade do indivíduo para que as violências sofridas por eles não causem remorsos ou comoção.
Essa ideia só se solidifica quando pensamos que vivemos em um país que teve como objetivo embranquecer a sua população - e um dos pilares históricos dessa lógica era dificultar o acesso das pessoas negras às áreas de saúde. Dá para supor que a mortaldiade infantil negra cresce após a escravidão, justamente porque enquanto aquele bebê era mercadoria ele tinha valor, mas depois ele se tornou um corpo descartavél e não quisto pelo estado.
O senhor Bernardo não é um caso isolado. Pessoas sofrem diariamente com o descaso nos corredores de hospitais. O que não quer dizer que devemos sair demitindo maqueiros por aí. Ingenuidade nossa pensar que os funcionários agiram por livre e espontânea vontade, que eles não receberam ordens, sabendo que a desobediência causaria demissões ou outro tipo de retaliação. Culpabilizar o elo fraco do racismo, que muitas vezes são outras pessoas negras, só dificulta a luta por uma mudança real. Essas microresoluções são atitudes para a mídia divulgar e a gente pensar que algo está sendo feito. A verdade é que os próximos profissionais contratados serão instruídos da mesma forma e farão a mesma coisa quando ordenado.
O SUS é um sistema fundamental para a democratização da saúde. É um dos pilares que mitiga as discrepâncias raciais na sociedade. Contudo, ele não deixa de estar inserido em uma sociedade extremamente racista, e repetir padrões determinados por elas é algo esperado. Enquanto a mudança não for estrutural, continuaremos a ver casos como esse onde a lógica racista permanece e os peões que executam ordens sendo linchados para o deleite de uma galera que ainda acredita que o problema são indivíduos e não o meio no qual ele foi socializado.