O que a filha da juíza nos ensina sobre privilégio branco
A socialização de pessoas negras e brancas no brasil determina a forma que elas se comportam perante a sociedade
Esta semana, foi amplamente compartilhado um vídeo onde uma mulher branca ameaça policiais dizendo ser filha de uma juíza. Tudo começa quando a médica, Paula Gonçalves Carneiro fala com os PMs para conseguir uma vaga para estacionar seu carro.
Durante a filmagem, feita pelos agentes, ela chega a falar: “Me prende porra. Me prende! Eu quero ver você me prender. Tu é macho ou não é?”. Em outro momento, a mulher senta na viatura impedindo que a patrulha fosse feita.
Enquanto a filha da juíza está sentada na viatura, uma outra mulher, que parece ser uma amiga, conversa com os militares que se explicam, dizendo que a médica precisava sair para que a equipe pudesse trabalhar.
Mais um caso onde o privilégio branco é esfregado na cara da sociedade. Não posso dar certeza, afinal, não sou de direito, mas me pareceu haver ali um desacato a autoridade, direção e bebida, fora o impedimento do trabalho de servidores públicos.
A situação acima me lembrou do empresário que falou para uma equipe da polícia: “Você é um merda de um PM que ganha R$ 1000 por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Eu quero que você se foda, seu lixo do caralho. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville". Detalhe, os policiais foram até lá após uma denúncia de violência doméstica.
Muita gente acha que situações como essa não é privilégio racial e sim de classe, mas para além do dinheiro pessoas brancas são a esmagadora maioria nos espaços de poder, e a possibilidade daquela pessoa branca ter acesso facilitado a outras pessoas que possam acarretar problemas na carreira desses agentes como responder na corregedoria, terem seus anseios de patente dificultados e até mesmo ser afastado do serviço, fazem com que eles automaticamente recuem.
Observem no caso da filha da juíza, ela não mostrou um documento sequer com o nome da mãe para que os PMs acreditassem piamente e não agissem da maneira correta. Só a brancura propicia que a narrativa dela seja aceita sem maiores questionamentos. A reação dos caras foi filmar para se precaver.
E, eu nem pretendo falar: “vocês acham mesmo que uma mulher negra, naquele mesmo cenário, iria ser tratada daquela forma?”. Gente, sejamos lúcidos, que pessoa negra teria a pachorra de agir daquela forma. Nossa socialização nos impõe desde cedo a temer a polícia. A estrutura social nos condiciona a ter atitudes mais amenas na base da porrada e do descaso. Não existe possibilidade de uma pessoa negra agir daquela maneira. Negros e negras, ainda que tenham razão e sem ocupar um local socialmente lido como subalterno, sofrem violência.
O caso do Crispim, por exemplo, empresário, enforcado por policiais após o gerente do banco pedir para retirá-lo da agência e dizer que 'não negociaria com esse tipo de gente'. Isso tudo filmado pela filha de 15 anos aos prantos. Também temos o caso da Valéria, advogada, que foi “contida” e algemada durante uma audiência do Rio de Janeiro.
Na periferia nem se fala, né? Lembro do caso da mulher que teve o pescoço pisoteado por um PM, segundo ela, chegou até a desmaiar, tentou denunciar o caso à Corregedoria, mas disseram que não poderia ser atendida, pois atendimentos não estavam sendo feitos devido à pandemia, e o agente que a pisoteou só foi afastado após 45 dias, mesmo com toda repercussão da imprensa.
Você pode ser um artista ou esportista, que graças ao racismo são as formas mais corriqueiras e legitimadas de ascensão da população preta pela estrutura racista, terá dinheiro, mas não terá uma mãe juíza, um pai desembargador, um tio promotor, tia política. De maneira intrínseca a sociedade sabe disso. A chance de pessoas negras estarem, ou terem, parentes em espaços de poder é infinitamente menor do que uma pessoa branca.
Para finalizar, observem que todos esses casos só chegaram ao conhecimento do grande público porque foram filmados. E o advento da filmagem deixa óbvio que esse recurso colabora com a justiça ao oprimido. A diferença é que na favela, e com preto, a câmera está na mão da população e em Alphaville, com gente branca, a câmera está na mão da polícia.