Ana Hickmann: não ceder à vergonha é essencial para mulheres denunciarem agressores
Ao falar sobre a violência que sofreu do marido, Ana Hickmann vocalizou o que milhares de mulheres passam dentro de casa no dia a dia
Em entrevista exibida na noite de domingo, pelo programa Domingo Espetacular, a apresentadora Ana Hickmann contou como tudo aconteceu no dia 11 de novembro, quando o marido, Alexandre Correa, partiu para cima dela após uma discussão. A história só não terminou numa tragédia maior porque Ana conseguiu escapar, se trancar na cozinha da casa que mantém em Itu, no interior de São Paulo, e chamar a polícia. Ao ouvir os três toques da ligação ao 190, o marido fugiu.
Covarde e canalha foram as palavras usadas por ela para definir o companheiro. A violência doméstica é exatamente isso, um comportamento covarde e canalha que destrói as mulheres de todas as maneiras, fazendo com que se sintam humilhadas, aviltadas, imputando a elas um sentimento de vergonha muito grande. Vergonha da família, de parentes, de amigos, dela mesma. Vergonha do julgamento dos outros por estar numa relação abusiva que muitas vezes parece um beco sem saída.
Num dos momentos mais fortes da entrevista, Ana Hickmann fala textualmente a palavra vergonha e se emociona. Nunca imaginou que sentiria isso na pele. Sentiu vergonha ao ser levada à delegacia e de perceber, naquele momento, que se juntava às estarrecedoras estatísticas das vítimas de violência doméstica no país. Uma mulher a cada 4 horas sofre algum tipo de agressão. Um feminicídio por dia.
No caso dela, Ana também se tornava mais uma vítima de violência doméstica dentro de uma mesma família. Quem tem alguma familiaridade com o histórico de vida da apresentadora, percebia que o pai dela era uma figura quase inexistente. O motivo? Porque nas palavras de Ana o pai é um agressor. Em incontáveis vezes quando ainda era criança, Ana teve que socorrer a mãe da violência física cometida pelo pai. Foi a duras penas, que a matriarca da família conseguiu romper com esse ciclo. Mas nunca escondeu a vergonha por ter permanecido ao lado de seu agressor por tanto tempo. Preferiu se calar. Foi em respeito à mãe que Ana, em todos esses anos vivendo como figura pública, manteve a história desconhecida.
Ao detalhar a violência doméstica que aconteceu com duas gerações de mulheres de sua família, a apresentadora dá uma enorme contribuição para que outras mulheres se reconheçam na mesma situação e sejam encorajadas a denunciar seus agressores. Sem retroceder.
Em todo esse processo, Ana Hickmann descobriu que deveria ter pedido por uma medida protetiva logo de cara, buscando amparo legal na lei Maria da Penha, como sugeriu a delegada que a atendeu. Na hora, hesitou. Pensou no filho, no turbilhão que teria que enfrentar assim que saísse daquela delegacia.
Mas logo percebeu que tinha sido "tola", em suas palavras, de ter dispensado medidas mais duras contra seu agressor e voltou atrás. "A lei serve para todas as mulheres", ressaltou no depoimento.
A lei serve para todas, mas o que diferencia é a maneira como a vítima vai ser acolhida. Ana pôde encontrar uma Delegacia da Mulher em Itu e teve ao seu lado uma delegada atenta às denúncias e que lhe explicou prontamente sobre os direitos que teria, amparados pela lei Maria da Penha.
A apresentadora também não precisou deixar sua casa para se proteger do agressor. Outras milhares de mulheres precisam fugir, às vezes só com a roupa do corpo, em busca de um abrigo ou outro lugar mais seguro para não correrem o risco de serem mortas pelos parceiros.
É preciso muito mais do que reforçar que as mulheres precisam denunciar os agressores. São necessárias também condições mínimas para protegê-las, a começar por um atendimento adequado da própria polícia. O Brasil tem pouco mais de 500 Delegacias da Mulher para 5.568 cidades. Sem contar que a maior parte delas está concentrada na região sudeste. É muito pouco.
Criadas em 2013, na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), as Casas da Mulher Brasileira podem salvar vidas, prestando acolhimento humanizado com serviços de saúde, jurídico, educacional e econômico. No entanto, dez anos após serem lançadas - e depois de serem quase sucateadas na gestão passada - as casas existem em número muito insuficiente. São apenas sete cidades brasileiras que contam com esse serviço: Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Boa Vista (RR), São Luís (MA) e Ceilândia (DF). Torcemos para que o novo governo federal siga no plano de construir mais 40 unidades, conforme foi anunciado em março deste ano.
Enquanto isso, o depoimento corajoso de Ana cumpre um papel fundamental encorajando outras mulheres a fazer o mesmo que ela e prevenindo que haja mais vítimas no futuro. Mas espero que também sirva para pressionar os poderes competentes de que é preciso avançar muito mais tanto na qualidade dos serviços emergenciais quanto nos números de delegacias especializadas e locais de acolhimento como a Casa da Mulher Brasileira, para combater essa verdadeira epidemia, covarde e canalha, que é a violência doméstica.