Anestesista contou com o silêncio de outros homens?
Fica difícil explicar o silêncio de pessoas próximas a esses criminosos
Quando recebi o convite para fazer uma coluna semanal em Terra NÓS, abordando temas relacionados a diversidade, muita coisa veio à minha cabeça. Poderia falar com entusiasmo sobre o sucesso que bateu à porta tardiamente da cantora Kate Bush, cuja música explodiu nas paradas 37 anos depois por causa de Stranger Things. Ou sobre outras mulheres que se sentiram revigoradas graças à passagem do tempo, como Ana Paula Padrão. A coluna de estreia poderia lançar um olhar mais otimista sobre a condição feminina, dentro desse universo tão estimulante que é a diversidade.
Mesmo com mais de três décadas trabalhando como repórter, cobrindo desde tragédias ambientais à vida política e cultural do país, e com plena consciência dos tempos sombrios atuais, não estava preparada para encarar uma notícia tão tenebrosa quanto a que dominou o noticiário nos últimos dias: a do estuprador de São João do Meriti, no Rio de Janeiro, preso em flagrante após violentar uma mulher durante a cesariana.
Pouco se sabe sobre Giovanni Bezerra, a não ser pelos posts em redes sociais, com frases perturbadoras como “vocês ainda vão ouvir falar de mim”.
Enquanto investiga quantas mulheres foram vítimas do anestesista, a delegada Bárbara Lomba, responsável pelo caso, garante que Bezerra tinha certeza de que continuaria impune. Não seria uma novidade. Quantos estupradores se valem de posições de poder e passam décadas até que sejam julgados por seus crimes, mesmo quando já existem denúncias?
No documentário Em Nome de Deus (Globoplay), chama a atenção o depoimento de uma das primeiras vítimas a denunciar o médium João Teixeira Faria, mais conhecido por João de Deus. Camila Ribeiro era uma menina quando passou a sofrer das consequências da síndrome do pânico. Sem saber mais como agir, sua família a levou até Abadiânia, Goiás, na esperança de que lá conseguisse ser curada.
Chegando no lugar que era visitado por pessoas do mundo todo em busca de cura, Camila detalha que o médium a recebeu em uma sala, juntamente com seu pai que a acompanhava. João de Deus pediu então que o pai dela ficasse de costas, rezando e de olhos fechados. Enquanto isso, o médium falava com a voz baixa, como se estivesse fazendo uma prece, e tocava os seios e a vagina de Camila. Ela só chorava. Não conseguia articular uma palavra sequer, tamanho o desespero. Ficou paralisada.
Após o episódio, Camila conseguiu contar ao pai o que havia acontecido. Fez um boletim de ocorrência, o caso foi julgado, mas na sentença, a juíza apenas considerou que houve um ato imoral, mas que isso não caracterizava uma violação sexual porque a vítima teria como se defender.
Outras denúncias só se tornariam públicas anos mais tarde. Se a justiça tivesse agido antes quantas mulheres seriam poupadas da mesma dor e do sofrimento nas mãos de um estuprador em série? Mas o lado da lei ficou em silêncio.
Em Hollywood Ending: Harvey Weinstein and the Culture of Silence, biografia sobre o ex-magnata do cinema que acaba de ser lançada nos Estados Unidos, o autor Ken Auletta fala da cumplicidade de poderosos em preservar a figura de Weinstein, mesmo sendo alertados pelas constantes grosserias com que se dirigia às mulheres.
Em 2002, Auletta tinha escrito um perfil para a revista The New Yorker, em que falava do lado violento de Harvey Weinstein e sobre os rumores dele ser um predador sexual. O assunto não foi adiante, mas Auletta, anos mais tarde, compartilhou suas anotações com outro colega de revista, Ronan Farrow, filho de Woody Allen. Foi quando a verdade sobre um dos homens mais poderosos de Hollywood veio à tona.
A pergunta que Auletta levanta na biografia serve para o médium de Abadiânia e o médico de São João do Meriti. As pessoas nascem monstros ou se tornam ao longo da vida? No caso de Weinstein, quanto mais poderoso se tornava, mais livre se sentia para ser violento com as mulheres.
E como explicar o silêncio de pessoas próximas a esses criminosos? Para que Giovanni Bezerra fosse contido, foi preciso um grupo de enfermeiras, que estranhavam a conduta do anestesista, tomar a atitude de gravar um vídeo com uma câmera escondida. Isso diz muito sobre a coragem das mulheres, mas também sobre o silêncio dos homens.