Caso Daniel Alves e as lições de uma Espanha feminista
Na Europa, o país está entre os mais avançados em questões como igualdade de gênero e representatividade de mulheres na política
Assim que começaram a sair notícias sobre o jogador de futebol Daniel Alves estar possivelmente envolvido em um episódio de agressão sexual contra uma jovem de 23 anos, soube-se de um detalhe que fez toda a diferença na condução deste caso até aqui: a existência do "No Callem". Trata-se de um protocolo, criado em Barcelona, para combater à violência sexual em espaços de lazer, lugares onde casos deste tipo são frequentes, de acordo com os números da Catalunha.
Não sou conhecedora da vida noturna espanhola, mas aqui no Brasil sabemos exatamente o quanto as mulheres são importunadas, sem a menor cerimônia e de forma agressiva, por homens que acham que 'balada' é território livre para agir como bem entenderem. Quantos casos de assédio terminam em violência sexual em circustâncias assim? E como no país sobram exemplos do que não deve ser feito com as vítimas - tais como exposição, humilhação, destruição de suas reputações - muitas delas sequer têm forças para denunciar. É inacreditável que ainda hoje seja preciso dizer com todas as letras que mulheres não são propriedade de homens. Que todas elas têm o direito de se divertir sem se sentir inseguras ou ameaçadas.
Em comparação com o que acontece aqui, Barcelona parece um outro mundo, uma realidade ainda distante. De festivais como o Primavera Sound e Sónar a casas noturnas, cerca de 40 espaços na capital da Catalunha aderiram ao protocolo "No Callem" e treinaram seus funcionários para identificar e agir em casos de assédio ou agressão sexual.
Por esse motivo que um segurança da casa noturna Sutton, onde estava Daniel Alves na noite de 30 de dezembro, abordou a jovem que saiu do banheiro da área VIP logo depois do jogador brasileiro. Vendo que ela estava abalada, o funcionário conduziu a moça a uma sala reservada para que ficasse mais à vontade para contar o que tinha acontecido. Ao notar que tinha lesões pelo corpo, chamou uma ambulância para levá-la a um serviço de emergência e acionou a polícia. Começava ali, em meio a madrugada, a investigação que culminou na prisão preventiva do jogador brasileiro.
Do relato ao começo da investigação, tudo foi muito rápido, impedindo que provas fossem apagadas e tornando este caso uma referência sobre como tratar episódios de agressão sexual. Pelo protocolo, a atenção sempre deve se voltar à mulher, que recebe acompanhamento médico e psicológico e tem que ter sua identidade preservada.
Não é de hoje que a Espanha se debruça sobre questões fundamentais das mulheres. Desde 2004, o país tornou-se uma espécie de farol para outras vozes feministas pelo mundo. Basta lembrar que, antes da pandemia de Covid-19, em um 8 de março (Dia Internacional da Mulher), meio milhão de espanholas vestidas de roxo saíram às ruas das principais cidades do país, numa mobilização impressionante.
Do mesmo modo que a Espanha investe em combater à violência sexual, há um esforço crescente em promover maior igualdade de gênero. Desde que chegou ao poder, em 2018, o primeiro-ministro Pedro Sanchez declara que seu governo é abertamente feminista. Na maioria dos ministérios, as mulheres estão no comando. Estão à frente de pastas como Saúde, Justiça, Ciência, Educação, Finanças e Defesa, por exemplo. No Legislativo, o cenário é parecido. A Espanha é um dos países europeus com maior paridade no número de mulheres e de homens em cargos legislativos.
Barcelona tem uma mulher na prefeitura, a ativista social Ada Colau. Ao assumir o posto, em 2015, Colau criou o primeiro Conselho Feminista e LGBTQIA+. A iniciativa foi responsável pela elaboração do protocolo "No Callem", que agora ganha visibilidade mundial por causa da acusação contra Daniel Alves.
Independentemente do desfecho, o caso ilustra como é importante ter mulheres na política pensando em políticas públicas para outras mulheres. Diz muito também sobre como a igualdade de gênero é essencial para uma sociedade comprometida com conceitos de civilidade e a própria noção de democracia e justiça.
Quando Ana Thaís Matos e Renata Mendonça, comentaristas de futebol nos canais do Grupo Globo, reclamaram do silencio no "Clube do Bolinha" no jornalismo esportivo, vemos o tamanho da encrenca. Ambas são minoria numa área predominantemente masculina.
Conversas sobre violência de gênero soam como um tema estranho ao universo dos homens que cobrem esporte talvez por absoluta falta de interesse, já que esse é um assunto que não fala diretamente a eles. Preferem ignorar, mesmo quando os acusados já foram condenados.
Tempos atrás, Ana Thaís cutucou os colegas de estúdio quando falavam sobre o técnico Cuca, deixando no ar que muita gente esquecia de coisas que o ex-treinador de Palmeiras e Santos tinha feito no passado. Estava se referindo à acusação de estupro coletivo de uma jovem de 18 anos, em Berna, Suíça, quando Cuca era jogador do Grêmio. Ana recebeu o silêncio da bancada em troca.
Todas as escolhas dizem muito sobre nós, inclusive o silêncio. O protocolo de Barcelona vai na direção oposta. A frase que dá nome ao protocolo resume a atitude mais recomendável em possíveis crimes de violência sexual: não nos calamos.