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Com o início da corrida eleitoral, a masculinidade tóxica sobe no palanque

No fundo, essa porção da sociedade se sente ameaçada pela emancipação feminina de perder seu lugar de privilégios

26 jun 2024 - 11h57
(atualizado às 12h10)
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No final da temporada 4 da série "House of Cards" (Netflix), o personagem Francis Underwood (Kevin Spacey), sentado num sofá da ala residencial da Casa Branca, arquiteta ao lado da mulher Claire (Robin Wright) um plano para salvar sua pele. Enrolado até o pescoço em uma série de acusações, ele vislumbra uma saída que pode funcionar a seu favor: criar o caos. O caos é a guerra. É o conflito perversamente desenhado para desviar a atenção do cidadão daquilo que realmente importa. 

Essa cena me vem à memória toda vez que ouço que alguém acusado de homofobia, racismo ou violência contra a mulher anuncia sua entrada na política. Parece um escárnio ter um representante do povo execrado por boa parte da opinião pública. 

Parece um escárnio ter um representante do povo execrado por boa parte da opinião pública
Parece um escárnio ter um representante do povo execrado por boa parte da opinião pública
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Mas num ambiente conservador, com uma porção de gente com ódio a tudo que se refere às conquistas das chamadas minorias, a entrada na política é como a guerra para o personagem de "House of Cards". É o meio que pode dar sobrevida a figuras controversas, que são consideradas representantes da masculinidade tóxica. Sejam elas um atleta dispensado de seu clube por falas consideradas homofóbicas que vira deputado em Brasília ou o ex-marido de apresentadora de TV, cujo nome está na imprensa por conta da acusação de violência doméstica. Agora ele anuncia querer 1 das 55 vagas da Câmara de Vereadores de São Paulo, conforme vídeo publicado em suas redes. 

Tão inacreditável quanto o anúncio de que é pré-candidato é o mote escolhido para impulsionar a sua candidatura: ele quer ser o porta-voz de homens que são alvo da violência praticada por mulheres. Sério isso? O ex-marido da apresentadora, acusado de violência doméstica, quer se colocar na posição de vítima? Parece uma caricatura surreal. Alguém mais inocente poderia achar uma tremenda falta de noção que uma pessoa com esse perfil, venha com esse papo furado para conseguir uma boquinha na política. Mas não é só falta de noção. Soa como oportunismo descarado mesmo. Figuras assim sabem que aglutinam em torno de si um grupo de pessoas ressentidas e partidárias do atraso e que, por isso, conseguem se eleger com alguns milhares de votos.

É aquele tipo de gente que acha que as mulheres estão mais interessadas em manchar reputações do que em qualquer outra coisa. São os primeiros a desqualificar a narrativa feminina, quando  elas denunciam serem vítimas de violência doméstica, criticando as medidas protetivas concedidas pela Justiça. Na cabeça dessa porção de gente, inclusive uma minoria feminina, as mulheres estão se achando donas do mundo. Onde já se viu isso?

No fundo, essa porção da sociedade se sente ameaçada pela emancipação feminina de perder seu lugar de privilégios, onde sempre exerceram controle e poder. Os ressentidos estão em missão, unidos numa guerra não declarada com objetivo de destruir direitos conquistados ao longo de décadas e que asseguram mais dignidade e respeito. Não à toa, se sentem à vontade para elaborar, por exemplo, sem nenhum constrangimento, um projeto de lei que fere a dignidade humana e que ficou conhecido como o PL do Estuprador. Não à toa, atacam a Lei Maria da Penha, fazendo inclusive com que a mulher que está na origem da lei, referência no mundo na proteção às vítimas de violência doméstica, tenha que pedir proteção ao Estado. Não à toa, detestam as Marielles Francos que ousam se colocar no meio de seus caminhos. 

Mas nem tudo são trevas. A mobilização de mulheres tem se mostrado arma importante para combater as tentativas de retrocesso. Vimos isso na discussão do tal PL do Estuprador em que os apoiadores do projeto, incluindo uma minoria de mulheres parlamentares, saíram com a imagem chamuscada, num efeito contrário do que imaginavam. 

Se não fosse pela união e solidariedade de outras mulheres, muitos episódios recentes teriam um desfecho bem mais trágico. 

Atentas e fortes, seguimos.

Fonte: Lúcia Soares Lúcia Soares foi repórter em alguns dos principais canais de televisão (Rede Globo, Band, Record TV, TV Cultura). Atrás das câmeras, trabalhou na edição (Decora) e direção (Chegadas e Partidas-temporada 5) de programas de variedades.
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