Como seria o mundo se o cuidado não fosse exercido só por mulheres?
Se as tarefas fossem distribuídas igualmente entre gêneros, mulheres estariam menos exaustas e seriam melhor remuneradas
Queria muito poder espiar alguns dos textos dos quase 3 milhões de jovens que neste último domingo, 05, foram surpreendidos pelo tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Os estudantes tiveram que escrever sobre o trabalho invisível de um exército de mulheres que são as grandes responsáveis pelo cuidado da família.
O tema pode ter sido inesperado para alguns estudantes, mas o assunto não tem nada de desconhecido. Aos candidatos do Enem, bastaria olhar para dentro de seus próprios lares e refletir sobre a desproporcionalidade entre homens e mulheres quando se trata do número de horas destinadas a cuidar da casa e da família. Por mais invisível que seja o trabalho delas, é muito fácil perceber que as mulheres são as grandes responsáveis por cuidar de tudo, até mesmo quando são a principal provedora do lar.
É uma tarefa que requer horas intermináveis de trabalho com serviços domésticos tais como limpar a casa, preparar as refeições, lavar e guardar a roupa da família. Além disso, elas precisam achar tempo para as idas ao supermercado, às consultas médicas, uma passada no posto de saúde. Que mulher não conhece essa rotina que consome horas e horas do dia?
A ONG Think Olga, que se dedica a estudar e sensibilizar a sociedade sobre questões de gênero, estima que, se somássemos o tempo que todas as mulheres ao redor do mundo dedicam ao trabalho do cuidado não remunerado, daria um total de quase 13 bilhões de horas diárias. Dá para imaginar o quanto essa contribuição "voluntária" gera à economia? São quase US$ 11 trilhões de dólares ao ano que poderiam ser remunerados. O trabalho invisível representa uma quantia maior do que a gerada pelas empresas de tecnologia do Vale do Silício, na Califórnia, onde estão Apple, Google, Uber e Facebook.
O que a gente pode deduzir com isso é que se as tarefas de cuidado fossem distribuídas de forma mais democrática entre os gêneros, teríamos certamente um cenário bem diferente. As mulheres não só estariam menos exaustas, com a saúde mental mais preservada, como teriam uma remuneração melhor nas profissões relacionadas ao cuidado. As atividades exercidas em sua maioria por mulheres, como as de diarista, babá, enfermeira, cuidadora, professora, foram vistas durante séculos quase como uma extensão das atividades domésticas.
A lógica que sempre predominou foi que se a mulher cuida como ninguém do filho e da família, não haveria pessoa melhor indicada para cuidar do filho e da família dos outros. A elas caberia realizar tarefas que praticamente foram 'destinadas' a cumprir, como se cuidar fizesse parte apenas da natureza feminina. Por que então remunerá-las decentemente? Como seria possível precificar o afeto, esse sentimento que sobra nas mulheres? Tudo muito conveniente para o patriarcado que veio com essa conversa mole lá atrás.
As mulheres da Islândia, em 24 de outubro de 1975, deram uma demonstração de força ao cruzar os braços exigindo direitos iguais e equidade salarial. Neste dia, as islandesas decidiram que não iriam trabalhar, nem se ocupar das tarefas da casa, deixando os filhos aos cuidados dos parceiros. O que se seguiu foi um caos na rotina do país.
Escolas não funcionaram porque a maioria dos professores era formada por mulheres. Vôos nos aeroportos foram cancelados porque as companhias aéreas não tinham profissionais para substituir as comissárias de bordo. Homens tiveram que levar os filhos ao trabalho e assistiram a uma queda na produtividade. Lojas tiveram que funcionar com a capacidade reduzida por falta de vendedoras. Para piorar, os supermercados da Islândia registraram recorde na venda de salsichas.
Com a redação do Enem, quem sabe uma geração de jovens possa refletir mais a fundo sobre os efeitos danosos que o trabalho invisível traz às mulheres em todo o mundo. Um tempo precioso e quase sempre solitário que poderia ser utilizado de outra maneira, em vez de aprisioná-las. O tempo livre poderia transformar a realidade de milhões de mulheres em todo mundo.