Diante de tragédias, o pior e o melhor do ser humano ficam lado a lado
Desastre no litoral de SP evidencia a solidariedade de quem acolhe e se opõe à ganância de quem vislumbra o lucro
Diante de tragédias, desastres naturais, crises humanitárias, os extremos se revelam. O sentimento de estar vivo se opõe à tristeza por aqueles que perderam a vida. A perspectiva de reconstruir a vida esbarra na desesperança trazida pelas dificuldades que não dão trégua. A generosidade dos que abrigam e acolhem convive com a ganância de quem vislumbra o lucro na terra arrasada. Em momentos assim, o pior e o melhor do ser humano ficam lado a lado, no mesmo cenário.
Longe de ser um fenômeno localizado. Só para refrescar a memória, em 2017, enquanto o furacão Irma massacrava o Caribe e Porto Rico a caminho da Flórida, com ventos de quase 300 km/h, as companhias aéreas acharam que não havia problema em colocar o preço das passagens na estratosfera. Em meio à tensão com a chegada do furacão anunciado como a tempestade do século, as tarifas subiram quase 10 vezes mais para quem tentava salvar a vida. Culpa do algoritmo ou apenas cinismo? Fico com a segunda opção.
Mas de maneira geral, seja no Brasil ou em qualquer parte do planeta, o que prevalece é a vontade de ajudar o outro como for possível, doando tempo ou dinheiro. Segundo o The World Giving Index, ranking que avalia como são feitas as doações no mundo todo, três bilhões de pessoas ajudaram alguém que não conheciam neste último ano. Pelo índice, o Brasil se mostrou um país mais solidário em 2022 do que nos anos anteriores. Ocupa agora o 18º lugar (aparecia antes na 54º posição) no ranking liderado por Indonésia, Quênia e Estados Unidos, os três primeiros colocados, respectivamente.
A pandemia de Covid-19, um dos maiores desafios enfrentados pela humanidade, deve ter deixado algumas lições entre nós. Percebemos que com ajuda dos outros nos saímos muito melhor do quando estamos isolados em nossos próprios mundos.
Na tragédia de São Sebastião, uma demonstração de solidariedade das mais tocantes surgiu a partir da iniciativa do chef de cozinha Eudes Assis, dono do Taioba, restaurante em Camburi que figura entre os 100 melhores de peixes e frutos do mar do país. O chef premiado entrou na cozinha pela primeira vez como lavador de pratos, rodou o mundo e passou por restaurantes famosos mundialmente como El Bulli (Barcelona) e Daniel (Nova York). Mas Eudes sempre teve consciência de que a comunidade da região onde nasceu e cresceu foi essencial para ele ter se tornado quem é hoje.
Quando o temporal arrastou casas, moradores e turistas em São Sebastião, o chef, mesmo abalado pelo cenário de guerra, não hesitou em arregaçar as mangas. Com sua expertise de empreendedor social queria fazer marmitas para alimentar as vítimas da tragédia. No entanto, sua cozinha no Taioba tinha sido tomada pelas águas barrentas do temporal do último fim de semana. Mas na segunda-feira, ainda com o dia escuro, Eudes rumou de bicicleta para o Projeto Buscapé, entidade que fica na vizinha praia de Boiçucanga e onde ele dá aulas de gastronomia para crianças em situação de vulnerabilidade social.
Chegando lá, colocou a cozinha para funcionar. "Foi a coisa mais linda de ver. As pessoas viram na rede social e veio um monte de amigo com pacote de arroz, pacote de feijão, sal, e assim conseguimos fazer 2 mil marmitas no primeiro dia", conta o chef.
Então ele fez um apelo para que viessem motoqueiros com mochilas térmicas para levar comida às vítimas. E eles apareceram rapidamente, enchendo suas caixas de isopor com marmitas. Eudes pediu mantimentos e foi atendido. Pediu mais embalagens de marmitas e elas chegaram.
Em pouco tempo, as duas cozinhas do projeto estavam a todo vapor produzindo comida de qualidade para alimentar e confortar os sobreviventes da tragédia. Na quarta-feira, o número de marmitas quintuplicou. Foram 10 mil marmitas feitas em quase 16 horas de trabalho ininterrupto. "Nós colocamos meta de marmitas por dia e toda vez que a gente atinge essa meta é uma emoção sem tamanho no grupo", diz Eudes, reforçando que sem a solidariedade dos outros, nada é possível.
"A comunidade caiçara tem por cultura se ajudar. O espírito de troca sempre esteve presente na nossa cultura". O chef lembra que alimentos como banana, mandioca, peixes e frutos do mar eram trocados por arroz, feijão e milho trazidos por tropeiros e bandeirantes que vinham do Vale do Paraíba. Até hoje, quando os pescadores da região voltam do mar, com suas canoas modestas esculpidas em troncos de árvore, são ajudados por quem está na praia. É na base da solidariedade que trazem suas embarcações até a areia, onde as canoas ficam ancoradas por toras de madeiras, adicionando mais poesia a esse litoral recortado por pequenas enseadas. Nas palavras do chef, conhecedor de 36 países, "não existe nada mais lindo do que o litoral norte". Diz isso com a certeza de que, depois dessa tragédia, o lugar vai ressurgir muito mais potente e com pessoas mais conscientes.
Justamente nas crises mais agudas, quando a maior urgência é retomar a vida, surgem oportunidades para promover mudanças significativas. Crises expõem com lente de aumento a necessidade de aprimorar quem somos no coletivo. Não se trata de salvar a si mesmo e, sim, de proteger os mais vulneráveis que estão ao nosso lado. Assistimos isso na pandemia de Covid-19 e estamos vendo agora no litoral paulista, onde a desigualdade social e o apetite predatório da especulação imobiliária são imorais. A solidariedade, vista nestas horas mais críticas, alimenta a esperança por dias melhores. Mas, sobretudo, estabelece um sentido de urgência para promover mudanças que não podem mais esperar.