"Ela Disse" traça retrato sobre como o sistema protege os agressores poderosos
Longa traz Carey Mulligan e Zoe Kazan no papel das repórteres que revelaram os abusos cometidos pelo produtor Harvey Weinstein
"Com base nas séries a que você assiste, achamos que gostaria de Ela Disse", informa a mensagem do serviço de streaming que chega pelo e-mail. Era o filme, baseado no livro de mesmo nome, sobre o trabalho árduo de duas repórteres do "New York Times", Jodi Kantor e Megan Twohey, para apurar as primeiras denúncias de agressão e estupro contra Harvey Weinstein, o magnata do cinema e fundador da produtora Miramax.
O longa de 2022, com direção de Maria Schrader, chega agora ao streaming (Prime Vídeo) com as atrizes Carey Mulligan e Zoe Kazan no papel das repórteres do Times. É um filme de jornalismo, com direito a cenas passadas na verdadeira redação do jornal. Assim como "Spotlight", "The Post" e "Todos os Homens do Presidente", "Ela Disse" se debruça sobre a investigação jornalística de um caso real. Ao final, revela o que aconteceu após a publicação da reportagem: um tsunami na vida de acusados e instituições envolvidas na denúncia.
A diferença deste filme é que, à frente da investigação, estão duas mulheres dispostas a validar as vozes daquelas que foram silenciadas. O filme mostra que cada testemunho não é apenas um relato da dor das vítimas que tiveram seus sonhos destruídos após serem vítimas de um predador sexual que usava sempre dos mesmos métodos para abusá-las. Os relatos são também um ato de coragem, quando do outro lado há um poderoso que pode comprar o silêncio de todo um sistema.
No caso de Weinstein, que passou décadas abusando sexualmente de funcionárias e atrizes de Hollywood, com a cumplicidade da indústria e até mesmo da Justiça, a casa caiu tão logo o editor do jornal, diante do texto da matéria no computador, clicou em "publicar". Oitenta e duas denúncias de agressão e estupro contra Weinsten se seguriam à reportagem. O poderoso homem do cinema, a quem era estendido o tapete vermelho em qualquer cerimônia do Oscar, recebeu uma pena de 23 anos de prisão após ser julgado em 2020.
Ao ver o filme, questiono se avançamos desde então. Penso na pergunta que a editora Rebecca Corbett (Patricia Clark) dirige aos colegas de redação. Ela indaga por que o assédio sexual é tão frequente e tão dificil de ser abordado. Como se dissesse, por que é tão difícil apurar esses casos, sempre envoltos pelo silêncio de testemunhas e das próprias vítimas que, muitas vezes, preferem não se expor para não serem julgadas em praça pública.
Mesmo com o fortalecimento do movimento feminista, incluindo o Me Too, tudo ainda parece demandar muito tempo. Trazer a verdade nos casos de abuso sexual exige um esforço coletivo da sociedade. Depende da coragem de algumas vozes que rompem o silêncio e da força de uma corrente de solidariedade que se forma em torno delas.
Basta ver o caso de outro magnata do entretenimento que tem dominado as manchetes atuais na imprensa. Durante quantos anos o rapper P. Diddy contou com o silêncio das pessoas a sua volta até ser denunciado? Quantas vítimas o produtor musical fez até que as acusações viessem a público?
Apesar da derrocada de Weinstein, há uma triste ironia que está no começo do filme e que diz muito sobre a dificuldade de expor homens poderosos. Antes de expor os horrores cometidos pelo produtor de cinema, Megan Twohey, umas das autoras da matéria, publicou reportagem com as mulheres que denunciaram os abusos sexuais do então candidato à presidência Donald Trump. Apesar das denúncias, Trump foi eleito em seguida, no ano de 2016.
Passados oito anos, e agora com uma condenação por fraude fiscal por não declarar ter pago 130 mil dólares pelo silêncio de uma atriz pornô, corre-se o risco de Trump retornar à presidência, na eleição de 5 de novembro. É só um lembrete de que os abusos cometidos por homens poderosos nem sempre são punidos como deveriam. E eles voltam para nos assombrar.