Fátima Bernardes deveria ser exemplo e não alvo de ataques
É chocante ver que outras mulheres ainda agem como fiscal da vida alheia, guiando-se por regras que só trazem sofrimento a elas mesmas
Leio que Fátima Bernardes é a nova vítima da bile que escorre pelas redes sociais. O motivo dos ataques, recheados de preconceito e demonstrações explícitas de etarismo, foi a roupa escolhida pela atual apresentadora de The Voice Brasil, da Rede Globo, para acompanhar a diplomação do namorado Túlio Gadelha, eleito deputado federal por Pernambuco.
Na última segunda (19), dia em que aconteceu a cerimônia no Teatro Guararapes, em Olinda, os termômetros na capital pernambucana marcavam 27º C logo nas primeiras horas da manhã. Durante a tarde, horário da diplomação, a temperatura chegou a 30º C, com umidade entre 51% e 85%. Traduzindo: estava quente pra dedéu.
Fátima, uma carioca que sabe conviver com as altas temperaturas, escolheu um conjunto branco de top de alças e saia assimétrica, com várias camadas de babados e fenda lateral. E assim, com braços de fora e exibindo um pouco de perna e barriga, Fátima, toda orgulhosa, foi elegantemente assistir o namorado receber o diploma do TRE de Pernambuco. Túlio é um dos 25 deputados federais eleitos pelo estado que tomarão posse em 1º de fevereiro de 2023.
Muita gente elogiou o casal, especialmente no Instagram do parlamentar. Já no perfil da jornalista, tinham uns comentários inacreditáveis, vindos sobretudo de mulheres. Fátima foi chamada de "tia", de "cocota" e criticada pela escolha da roupa. Disseram que era para "competir com as novinhas", que cairia melhor "na filha dela para ir numa balada". Um show de horror.
Quando mulheres destilam ódio a outras, neste nível, é quando contabilizamos os estragos provocados por uma vida inteira de controle sobre corpos femininos. É um mecanismo perverso em que a própria mulher outorga o papel de fiscal do corpo alheio, uma espécie de polícia de costume que dita o que pode e o que não pode ser usado. Remete também às "tias" de O Conto de Aia (a distopia de Margaret Atwood que virou série), que representam uma casta social capaz de cometer as maiores violências contra outras mulheres, a serviço de uma sociedade onde quem manda são os homens.
É muito triste limitar nossas escolhas quando se está preocupada constantemente com o que os outros vão pensar. Ainda mais porque questões sobre como uma mulher deve se portar e vestir foram formuladas a partir do olhar masculino. Por exemplo, o que se convencionou ser chamado de sexy? A resposta está naquilo que o homem acha sexy- ou "vulgar"- nas mulheres. Outro dia, lendo um artigo sobre a escolha de revistas, como a "People'', de homens e mulheres considerados os mais sexys do ano, chamou atenção o fato de que, quando se trata de mulheres, são os corpos os grandes troféus. Mas quando são homens, como George Clooney e Harrison Ford, são os rostos, com a pele cheia de marcas do tempo, emoldurados por cabelos grisalhos, o grande atrativo. Por que isso não acontece com as mulheres? Porque, na visão masculina heterossexual dominante, ser sexy tem a ver com o corpo jovem e não com as nossas vivências. Seria libertador parar de reproduzir essa distorção de que uma mulher com mais de 40, 50, 60 anos é obrigada a se portar de acordo com uma série de regras que só servem para trazer sofrimento a elas mesmas.
Mas, voltando à Fátima, penso que ela deveria ser festejada por nos lembrar que uma mulher, aos 60 anos, pode, sim, continuar produtiva e capaz de se reinventar profissionalmente. Sempre admirei mulheres, com um longo histórico de serviços prestados ao jornalismo e com uma carreira longeva na frente das câmeras. Nos Estados Unidos, isso é bem mais comum. Lembro de Barbara Walters que, depois de cinco décadas fazendo grandes entrevistas, anunciou sua aposentadoria aos 84 anos. Lá também, os programas matutinos, equivalentes ao Encontro e Mais Você, são tradicionalmente ancorados por apresentadoras mais velhas, como Gayle King, 67 anos, e Diane Sawyer, 76 anos. Tem Christiane Amanpour, que, aos 68 anos, comanda um programa sobre política internacional na CNN, além de Connie Chung, 76 anos, uma das pioneiras em anco rar um telejornal em horário nobre, e Oprah Winfrey, 68 anos, ícone televisiva.
Adoraria que fosse um fato corriqueiro outras brasileiras terem uma trajetória semelhante a de Fátima Bernardes. Acredito, sinceramente, que caminhamos para isso, mesmo que a passos lentos. De qualquer forma, Fátima está aí para provar que mulheres podem e devem se desafiar a fazer coisas novas, quando sentirem essa vontade. Também podem, com filhos criados e casamento desfeito, voltar a amar novamente, não importa a idade. O direito à felicidade, esse é inegociável.