Não adianta falar de valores e diversidade e fazer campanhas consideradas ofensivas
Zara retira campanha do ar após acusações de usar a dor dos palestinos como estética de campanha
Toda vez que surge uma polêmica envolvendo campanhas de grandes marcas e que levam a um clamor pelo boicote à empresa, meu primeiro impulso é pensar em que circunstâncias a peça publicitária controversa foi aprovada. Visualizo uma sala de reunião cheia de criativos e fico a imaginar se nenhuma voz discordante alertou, antes da aprovação final, que na hora que a campanha chegasse ao público poderia 'dar ruim'.
Um pensamento semelhante tive ao me deparar, em 2005, com a notícia de que o príncipe Harry, quando tinha 20 anos e era o terceiro na linha de sucessão do trono inglês, achou que não haveria problema em se fantasiar de nazista, exibindo uma suástica no braço, para ir a festa de um amigo. Não bastasse a falta de noção do moço, será que não teve ninguém no palácio que pudesse dar um toque de que a escolha era extremamente ofensiva? Alguém poderia lembrá-lo que não era engraçado usar um símbolo associado à perseguição e ao assassinato de 6 milhões de judeus. Sem falar no desrespeito à memória do país do príncipe, cuja população teve que viver a duras penas sob os bombardeios efetuados pelas tropas alemãs durante o período da 2ª Guerra.
Desde os atentados terroristas do Hamas, em 7 de outubro, e os ataques das Forças de Defesa de Israel que se seguiram à população de Gaza, a frágil estabilidade mundial anda ameaçada pelo rumo que o conflito tomou. São imagens e relatos devastadores de uma "rotina macabra", como qualificou em editorial o jornal francês "Le Monde", em que "os mortos somam-se aos mortos" em Gaza.
Em meio a um conflito cada dia mais sangrento, Zara, a gigante espanhola de fast fashion, colocou no ar uma nova campanha chamada "The Jacket", em que a modelo Kristen McMenamy aparece num cenário com partes destruídas e moldes de manequins mutilados. Em uma das fotos, a modelo carrega nos ombros o corpo de um manequim enrolado numa espécie de lençol branco, assim como fazem os palestinos com os mortos em Gaza.
Diante da repercussão negativa, a Zara retirou a foto com o corpo do manequim envolto no pano, mas manteve as outras imagens em meio a um cenário destruído. Mas hoje não sobrou foto alguma para contar história. Toda a campanha foi retirada do ar.
A marca publicou um comunicado se desculpando pelo o que considerou um mal-entendido, alegando que a campanha havia sido concebida em julho, fotografada em setembro e que a série de imagens de "esculturas inacabadas" foi criada com o único propósito de mostrar peças de alfaiataria dentro de "contexto artístico".
Mesmo que a campanha tenha sido fotografada antes do conflito escalar para a violência atual, teria sido mais prudente que a empresa revisse o tal contexto artístico das fotos antes de publicá-las. Deveria ter se antecipado à opinião pública e previsto que a campanha poderia dar margem a uma associação com o que acontece em Gaza.
Não é possível que os criativos da publicidade e do marketing da empresa estejam tão distanciados dos acontecimentos do mundo real. No caso da Zara tem ainda um agravante: não é a primeira vez que o nome da marca aparece envolvido em episódios de discriminação e racismo.
Um desses episódios, ocorreu dois anos atrás, quando o modelo palestino Qaher Harhash, que já estrelou campanhas de H&M e da fragância de Yves Saint Laurent, postou em suas redes prints de mensagens que recebeu de Vanessa Perilman, chefe do departamento feminino de estilo da Zara. Em sua conta do Instagram, Harhash costuma abordar a questão palestina, assim como faz outra colega de profissão, a modelo Bella Hadid. Mas, em 2021, foi surpreendido por uma mensagem de Perilman. "Se o seu povo fosse educado eles não explodiriam hospitais e escolas”, escreveu Perilman. A estilista disse ainda que se o modelo fosse sair do armário em qualquer país muçulmano, seria apedrejado até a morte.
Na época, a Zara emitiu uma nota condenando os comentários de sua estilista, alegando que eles não refletiam os valores da marca. Dizia-se uma empresa diversa e que não tolerava discriminação de nenhum tipo. E ficou por isso mesmo.
Depois que pedidos de boicote à grife espanhola voltaram à cena, Qaher Harhash se pronunciou novamente em seus stories. Abordou questões delicadas envolvendo o mundo da moda, tais como diretores de casting que não contratam modelos árabes. Além disso, disse que frequentemente ouve recomendações para não falar sobre sua identidade palestina.
O compromisso com diversidade e inclusão não pode ser apenas retórica, um texto bonito em notas para a imprensa. Não adianta estampar uma diversidade de corpos, rostos e idades - aliás, a campanha que Zara retirou tinha como estrela Kristen McMenamy, de 58 anos - se o desejo por um mundo com mais respeito a todas as culturas, mais tolerante e com menos discrimanação for só uma fachada.
As pessoas não são tolas. Não querem mais o papel de consumidores que aceitam qualquer coisa, sem levar em conta a ética das corporações. Baratos podem ser os produtos à venda no mercado, nunca as vidas humanas.