Pancadaria e morte em estádios: o descaso com a vida humana
A lógica da exploração, por trás de tudo isso, não pode seguir impune obedecendo apenas aos códigos de quem lucra
"Cenas lamentáveis" é a expressão usada pela maioria dos comentaristas de futebol quando a pancadaria corre solta dentro e fora do estádio. Ontem, no jogo entre Brasil e Argentina, houve mais um episódio envolvendo as tais cenas. Na origem da pancadaria, estava a decisão de misturar as torcidas no Maracanã, como se a rivalidade - e atualmente o quase clima de guerra entre elas - fosse algo estranho aos dirigentes do futebol.
Quando as câmeras que transmitiam o jogo flagraram o que acontecia em um dos setores do estádio, dava para ver torcedores, inclusive mães com crianças no colo, tentando escapar do tumulto do jeito que dava. Cenas intoleráveis, eu diria. Mas qual teria sido o motivo para não haver uma área do estádio destinada à torcida visitante? Será que daria para acomodar mais gente caso as duas torcidas ficassem misturadas? Inaceitável é que pessoas saiam de casa para se divertir, pagando caro por um ingresso, e ainda corram o risco de sair lesionadas ou até mortas.
Soma-se a isso a morte de Ana Clara Benevides e tudo que se seguiu num dos dias mais quentes da história do Rio de Janeiro, com sensação térmica beirando os 60º graus, e é possível ter uma mostra de como a vida humana é tratada com descaso por quem lucra organizando grandes eventos aqui no Brasil. Quando veio a notícia da morte, depois que Ana Clara desmaiou antes do show começar, soube-se também que, mesmo com o calor extremo que fazia, não era permitido ao público entrar com água dentro do estádio. Água, gente!
Para conseguir um copo de água, além do preço alto, os fãs de Taylor também enfrentavam dificuldade para circular dentro do Engenhão, de tanta gente que tinha. Uma plateia tratada sem nenhum respeito ou consideração, cercada por tapumes que contribuíram para transformar o lugar numa fornalha, mas que certamente rendeu lucros extraordinários aos organizadores e investidores da empresa que trouxe a cantora ao Brasil.
Tenho a suspeita de que quando se trata da plateia de grandes shows, os cálculos sobre o número de pessoas que cabem num metro quadrado são mais generosos no Brasil do que em outros lugares do mundo. Pergunte a qualquer pessoa que tenha ido a um show fora do país, se elas passaram pelos mesmos perrengues daqui. Um dos episódios mais traumáticos envolvendo minha família foi a partida precoce de meu primo Pablo, uma das oito vítimas que morreram asfixiadas na saída de um show dos Raimundos, na baixada santista, em 1997. Dentro do local, que comportava 2.600 pessoas, havia quase 6 mil fãs da banda.
No entanto, no Brasil atual permanece a sensação de que a lotação de shows com estrelas mundiais da música beira o limite da capacidade. Parece que a regra é 'entuchar' gente o máximo possível. Enquanto houver interessado, toca vender ingresso.
A ganância por mais lucros pode percorrer todos os níveis da produção dos grandes shows. Denúncias de que estruturas de palco e do entorno são montadas com mão de obra submetidas a condições degradantes de trabalho são frequentes. A própria Time For Fun (T4F), que trouxe Taylor Swift ao Brasil, é ré numa ação movida pelo Ministério Público do Trabalho.
A denúncia veio durante os preparativos do festival Lollapalooza, em São Paulo. Os trabalhadores identificados em condições análogas à escravidão eram encarregados pelo transporte e manutenção de bebidas do evento. Eles tinham que dormir no local do festival em tendas e sobre tiras de papelão. Além da jornada exaustiva, recebiam o valor de uma diária, que seria de R$ 160 reais.
Um pouco antes da pandemia, fiz um vídeo para o Sesc SP em que entrevistei dois rapazes na fila de uma entidade da Igreja Católica que fornecia refeições para moradores de rua. Os moços se apresentaram como montadores de palco. Embora não estivessem totalmente sem trabalho, o pouco que recebiam não era suficiente para tirá-los da rua. Na época, ganhavam R$ 60 reais por dia. Anos depois, não estranhei quando o padre Júlio Lancellotti, denunciou que a prefeitura de SP, através de uma empresa contratada, explorava a mão de obra de moradores de rua para montar os palcos da Virada Cultural. A diária eram os mesmos R$ 60 reais por dia, com direito a uma marmita.
Todos esses abusos não devem ser tratados como episódios pontuais. Pode haver a alegação que for, atribuindo a culpa à empresa terceirizada, não importa. O que importa é que a lógica da exploração, por trás de tudo isso, não pode seguir impune, obedecendo apenas aos códigos de quem lucra.
Vamos ver como será a próxima sequência de shows de Taylor Swift, agora em São Paulo. Ainda há uma agenda até o final do ano de shows que levam a assinatura da T4F como produtora. Entre eles, a apresentação das bandas The Killers, Pet Shop Boys e a realização do festival Primavera Sound. Não me venham com marketing de evento carbono zero, de empresa sustentável e responsável socialmente porque não combina com tudo o que vimos até aqui. Empresa sustentável e responsável não trata gente com todo esse descaso.