Sem punição, torcedores racistas se sentem “autorizados” a prosseguir em seus insultos
É preciso dar o nome certo aos ataques racistas. Trata-se de crime de ódio e deveria receber punições previstas em lei
No início de janeiro de 1995, o time londrino do Crystal Palace recebia em seu estádio o poderoso Manchester United, treinado na época por Sir Alex Ferguson. Essa partida ficou marcada por um abuso racial dito por um torcedor inglês e que teve um desfecho nunca visto. Após ser expulso da partida, o ídolo do Manchester, o francês Eric Cantona, caminhava para os vestiários quando um torcedor gritou "volte para França, seu bastardo". Ao ouvir aquilo, Cantona não pensou duas vezes e partiu para cima do torcedor com uma voadora no melhor estilo kung fu. Descobriu-se então que o torcedor atingido pela voadora de Cantona era um tremendo de um fascista, um hooligan com ligações com grupos nacionalistas. Nunca falha.
Cantona passou duas semanas na prisão, pena que depois foi revertida em serviços comunitários. O francês também foi suspenso do futebol por nove meses. Mas seu gesto ganhou o apoio de torcedores pelo mundo todo. Além disso, ajudou a escancarar um problema para o qual até hoje pouca coisa foi feita para solucionar. Por que um insulto racial deveria ser visto como parte do ambiente do futebol? Como aceitar que o ódio motivado por xenofobia, racismo, possa ser entendido como parte do jogo?
Dois anos depois, o lateral brasileiro Roberto Carlos, quando fazia sua estreia no El Clásico, como se chama o duelo entre Barcelona e Real Madrid, vestindo a camisa da equipe madrilenha, sentiu a dor imensurável de ser alvo do racismo da torcida adversária. Neste jogo, os torcedores da equipe da Catalunha tiveram o mesmo comportamento execrável, criminoso que os torcedores do Valencia neste último domingo, quando Vini Jr estava em campo.
Nada mudou em quase três décadas. Muito se falou, muita nota de repúdio foi escrita, mas punição mesmo, quase não se teve notícia. Com a falta de atitudes mais drásticas, os racistas dos estádios foram se sentindo "autorizados" a seguir adiante. Até chegar ao momento em que o estádio inteiro de Mestalla, onde Vini e o Real Madrid jogaram no final de semana, entoar cantos em que o craque brasileiro foi chamado de macaco.
No último ano, isso virou uma rotina e um tormento na vida de Vini. Nenhum jogador deveria ser obrigado a "responder em campo", como é comum ouvir de narradores e comentaristas, a tanta violência. Sinceramente, não sei como Vinícius Jr consegue ser capaz de seguir brilhando, demonstrando toda a sua genialidade, sendo vítima dos piores insultos.
Hoje leio o depoimento do treinador Carlos Eduardo Abrantes Beraldini, que descobriu o talento de Vini Jr quando ele chegou na escolinha do Flamengo, ainda criança, explicando que a força mental sempre foi uma característica do atleta. Sobre isso, já não resta a menor dúvida. Vini é um gigante. Tragado para o meio da tormenta, consegue jogar num nível absurdo e ser um dos melhores do mundo. O atacante é desde já um exemplo de como tratar a questão do racismo. A maneira como tem respondido aos insultos é de uma força extraordinária.
É preciso proteger Vini Jr, como bem disse Rio Ferdinand, o ex-jogador inglês, lenda do Manchester United e atual comentarista de futebol, ao conclamar todas as grandes estrelas deste esporte a sair em defesa do brasileiro. O francês MBappe que divide atualmente o Olimpo do futebol com o atacante brasileiro escreveu mensagem. "Você não está sozinho", disse o craque de "les Bleus" em suas redes a Vini Jr.
Também é preciso dar o nome certo aos ataques racistas que temos assistido. Trata-se de um crime de ódio. É disso que se trata. A escalada de ódio chegou num ponto que até o omisso Real Madrid do passado, quando pouco fez para proteger o brasileiro Roberto Carlos, emitiu um comunicado condenando os atos contra Vini, alegando que os insultos raciais "constituem um ataque direto ao modelo de convivência do nosso Estado social e democrático de direito".
Para crimes de ódio, existem penas de prisão previstas na legislação espanhola. Enquanto a maioria das denúncias de racismo continuarem sendo arquivadas ou sem resolução, nada deve mudar. Mas se esses insultos resultarem em punições de fato, talvez seja possível avistar uma solução para que estádios de futebol não se convertam em reduto de racistas.