Viola Davis: guerreira nas telas e inspiração na vida real
Aos 57 anos, a atriz que estrela “A Mulher Rei” está no auge da sua carreira. Além de inspiração, Viola é um símbolo de resistência
Assisti “A Mulher Rei” poucos dias antes da estreia nos cinemas (dia 22/09) movida pela curiosidade sobre toda a história que cerca o filme. “A Mulher Rei” é um drama épico sobre mulheres guerreiras, feito por mulheres. Além do elenco predominantemente feminino, as mulheres assinam a direção (Gina Prince-Bythewood), o roteiro (Dana Stevens e Maria Bello), a direção de fotografia (Polly Morgan), o figurino (Gersha Phillips), mostrando que a representatividade feminina na indústria do cinema tem se consolidado ano após ano.
O filme traz Viola Davis encabeçando o elenco, na pele da general Nanisca, o que já é uma atração e tanto por se tratar de uma das melhores atrizes de sua geração. A cada atuação, Viola presenteia o público com uma gama de emoções amparadas por uma força singular.
Mas houve uma época em que ela tinha dúvidas sobre seu futuro como atriz. Por maior que fosse seu talento, os papéis oferecidos à atriz nunca eram os de protagonista ou de personagens que faziam par romântico. Segundo Davis, os diretores de elenco achavam que ela não era bonita o suficiente. Além disso, era discriminada pelo tom escuro de sua pele, como contou em entrevista ao jornal The New York Times, enquanto finalizava as filmagens de “A Mulher Rei”, numa locação próxima à Cidade do Cabo, na África do Sul.
Nem mesmo as duas indicações ao Oscar (“Dúvida'' em 2009 e “Linhas Cruzadas” em 2012) fizeram aumentar as propostas para papéis principais. Foi nessa época que Viola Davis e o marido Julius Tennon decidiram que era hora de trabalhar em seus próprios projetos e criaram a JuVee Productions.
Entre os planos do casal estava o de filmar o épico "A Mulher Rei", inspirado em fatos reais sobre um grupo de guerreiras, conhecido por Agojie, que protegia o reino de Daomé, na África Ocidental. O reino ficava onde hoje está situado o Benin. Do século 17 até meados do século 19, Daomé intermediou o tráfico de escravizados. Mas no filme, as temidas guerreiras, lideradas por Nanisca/Viola Davis, lutam pelo fim do tráfico dentro de seu próprio reino contra um inimigo interno e mercadores estrangeiros, com destaque para dois brasileiros que chegam a Daomé para levar à força homens e mulheres de lá.
O investimento num projeto mais autoral, que começou 6 anos atrás, provou que Viola estava certa. Somente no primeiro final de semana de estreia nos Estados Unidos, a saga sobre a coragem destas guerreiras arrecadou mais de 19 milhões de dólares nas bilheterias, muito mais do que a expectativa inicial. Segundo a Variety, revista especializada em entretenimento, 61% do público que lotou as salas de cinema era composto por mulheres. A maioria delas, mulheres negras.
Na tela, há um sentimento de irmandade entre as personagens. As Agojies não podem se casar ou ter filhos. Por outro lado, como é dito no filme, estão livres de um marido abusivo. Todas as guerreiras estão lá umas pelas outras, arriscam-se, inclusive desafiando ordens superiores, para que nenhuma delas seja deixada para trás, correndo risco de ser abusada ou morta pelo inimigo. Lutam bravamente tendo seus corpos como principal arma. Como diz Nanisca, a história de uma guerreira é contada por suas cicatrizes e feridas.
Viola Davis tem várias cicatrizes que ganhou ao longo da vida, como informa em sua autobiografia “Em Busca de Mim”(2022). Na infância marcada pela pobreza, a atriz testemunhou o comportamento violento do pai, que batia em sua mãe quando estava sob efeito da bebida. Às vezes, Viola chegava em casa e via gotas de sangue espalhadas pelo chão, indicando que a mãe havia fugido para não ser morta pelo companheiro. Na mesma época, a atriz ainda era vítima de bullying por parte de seus colegas de escola.
Viola não é apenas uma sobrevivente de um ambiente violento. Ela foi além e se tornou a única atriz afrodescendente, de um total de 24 atores, a ter o que a indústria do entretenimento chama de Tríplice Coroa. Significa que nas três áreas de atuação, cinema, televisão e teatro, Viola conquistou os principais prêmios: um Oscar por "Um Limite entre Nós”, um Emmy por "Como Defender um Assassino” e dois Tony por "King Hedley II" e "Fences"(a versão teatral de "Um Limite Entre Nós"). Um feito extraordinário.
Quantas Violas existem por aí, sobreviventes de traumas e violência, com uma vida longe do glamour das telas de cinema? Quantas mulheres são empurradas à condição de guerreiras por absoluta necessidade, por não haver outra alternativa?
Não precisamos ir muito longe para descobrir isso. No Brasil, quase metade das famílias são chefiadas por mulheres. Em algumas delas, os pais estão ausentes desde a certidão de nascimento dos filhos. Nunca é demais lembrar que, em 7% dos nascimentos registrados em 2022, só consta o nome da mãe na certidão. O que nos faz supor que tanto a criação quanto o sustento dessas crianças estarão, num primeiro momento, sob responsabilidade de uma mulher.
No país, as mulheres representam a maioria da população com ensino superior. Mas, apesar de serem mais instruídas, lideram os índices de desemprego e estão sub-representadas em cargos de chefia. Em 2019, segundo o IBGE, 62,6% dos cargos de gerência eram ocupados por homens e 37,4% por mulheres.
Na política brasileira, o abismo é ainda maior, de acordo com o IBGE: apenas 14,2% dos parlamentares são mulheres. Isso coloca o país muito atrás de seus vizinhos sul americanos em termos de representatividade feminina em cargos públicos.
O que nos traz de volta ao filme de Viola Davis. Nele, as mulheres lutam e arriscam a vida pelo reino. Mas quem governa é um rei. Até o dia em que as coisas deixam de ser como sempre foram.