Há uma maneira justa de incluir pessoas trans no esporte?
Sem consenso, debate divide o universo esportivo e resulta em casos de transfobia
Um mapeamento inédito feito em São Paulo mostrou que 42,8% da comunidade LGBTQIA+ não tem acesso ao esporte no Brasil. O estudo, conduzido pela ONG Nix Diversidade, com apoio da Nike, traz dados que não surpreendem.
Entre os principais motivos que afastam essas minorias das práticas esportivas, 18,3% apontam os relatos de homofobia, transfobia ou outras discriminações, assim como bullying ou assédio. Quando perguntados especificamente se já sofreram discriminação ou presenciaram algum tipo de discriminação contra pessoas LGBTQIA+ na prática esportiva, o número é mais assustador: 63,5% disseram que sim.
São números que corroboram com o que observamos no dia a dia: o preconceito está presente na sociedade como um todo, no esporte amador e no de alto rendimento. E a discussão mais recente, que ganhou força justamente no mês de junho, quando é celebrado o “orgulho LGBTQIA +", envolve especificamente a letra T da sigla: os transexuais.
Afinal, pessoas que passaram pela transição de gênero e hoje são mulheres trans podem atuar em categorias femininas de quaisquer esportes? Há uma superioridade no desempenho? Quais são os fatores que definem essas regras de participação?
Já adianto que essas perguntas, que começaram a ser debatidas com mais ênfase em 2003, no Congresso de Estocolmo, seguem sem uma resposta definitiva. São praticamente 20 anos de uma indefinição que gera inúmeros prejuízos para os atletas trans e para o esporte, de modo geral.
“Talvez o achar uma regra única seja o que tenha tardado tanto e hoje tenha causado todo esse problema”, argumenta Dr. Roberto Lohn Nahon, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, em live do Papo de Mina. Segundo ele, a falta de uma nova regra de forma por parte do Comitê Olímpico Internacional (COI) provocou esse recente movimento das federações, que começaram a “legislar individualmente sobre isso” - apoiadas pelo documento “Diretrizes do COI sobre Justiça, Inclusão e Não Discriminação com Base na Identidade de Gênero e Variações de Sexo”, apresentado pela própria entidade internacional no ano passado.
Mas autorizar que cada modalidade defina suas próprias diretrizes é algo ruim? Não necessariamente. Essa pode ser a forma mais “razoável” de identificar se há ou não vantagem, mas é algo que envolve, nas palavras do médico, “muito mais o lado que se olha do que o certo ou errado binário”.
É uma questão muito mais de quais são (ou serão) essas regras do que o fato de elas passarem a existir. Para a comentarista esportiva Brunna Frihed, outra convidada da live do Papo de Mina, que passou recentemente pela por transição de gênero, decisões como a da Federação Internacional de Natação (Fina) são um retrocesso. “Inclusão é fazer parte de um todo, é mostrar que a pessoa tem direito de estar ali”, afirma, e ainda rebate as alegações de que atletas como Lia Thomas, primeira mulher trans que venceu uma prova da liga universitária dos EUA, têm vantagens injustas: “mulheres cis também têm vantagem sobre mulheres cis.”
A falta de concordância tanto por parte da comunidade científica quanto por parte da comunidade esportiva indica que o assunto deverá sofrer muitas reviravoltas - o que, reforço, nada soma aos projetos de inclusão e de diversidade que tanto se fala por aí. Com esses movimentos, os números apresentados no começo do texto, de que 42,8% da comunidade LGBTQIA+ não tem acesso ao esporte no Brasil, pouco devem se alterar.
Dr. Roberto Lohn Nahon defende que, no momento, a melhor alternativa para uma divisão, seja ela definir que a mulher trans tem ou não direito de competir no feminino ou numa terceira classe (somente com atletas trans, por exemplo) é olhar esporte por esporte, uma vez que “não tem como considerar golfe igual levantamento de peso, pois são competições fisiologicamente completamente diferentes”, explica.
O especialista reforça que tudo passa por uma necessidade de pesquisar a fundo, pois arbitrar sem clareza pode transformar um erro em outro erro. Na linha desta solução, Brunna faz uma ressalva, que vai ao encontro do que propôs a federação alemã de futebol: é importante perguntar para a pessoa envolvida onde ela se sente bem. “É sempre pensado como um todo, mas tem que pensar no indivíduo”, diz.
Até a próxima Olimpíada, em Paris-2024, muitas novas decisões devem ser tomadas, seja por parte das federações internacionais e até mesmo pelo COI. O que nós esperamos é que quaisquer que sejam essas resoluções venham somar ao esporte, e que de maneira nenhuma sejam um reforço à transfobia.