Os desafios legais da dupla maternidade
Mesmo com mais de 45 mil registros em certidões de nascimento por duas mães nos últimos nove anos, leis do país não garantem direitos
Hoje é cada vez mais comum acompanhar o processo de gravidez que envolve duas mulheres. De perfis nas redes sociais a casais de famosas como Nanda Costa e Lan Lanh, mulheres lésbicas compartilham a realidade da chamada dupla maternidade. De acordo com a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), entre 2013 e fevereiro de 2022, foram realizados 47.124 registros de crianças por duas mães em todo o Brasil.
Se por um lado, a dupla maternidade tem ganhado as redes sociais e os lares brasileiros, a legislação ainda está longe de contemplar esse modelo familiar. Por isso, o Nós entrevistou a advogada Lucila Lang do escritório Lang & Michelena Advogadas que atende, em especial, casos de pessoas LGBTQIA+, que relatou os principais desafios enfrentados por mulheres lésbicas na hora de ter filhos.
Lei ainda é restrita para quem gesta
A decisão de quem vai gestar o bebê é muito particular. Pode ser quem nutre um maior desejo ou quem está mais apta sob a perspectiva de saúde física e mental, por exemplo. Em muitos casos a tentativa é dupla, com ambas as mães passando pelos processos para engravidar. No entanto, na maioria dos casos, apenas uma das mulheres do casal engravida, o que faz com que automaticamente, as leis sejam exclusivas para elas. "Culturalmente nossa sociedade parte do princípio que o lugar da maternidade está ligada à gestação e essa visão é geral e não só da lei", explica Lucila.
Licença-maternidade e salário-maternidade são os principais direitos quando se fala em parentalidade e, em geral, estão atrelados. "São coisas diferentes mas que acontecem juntas. A licença é o período de afastamento do trabalho, já o salário significa a verba disponibilizada durante o período de afastamento", explica a advogada.
Para quem gesta, a legislação prevê 120 dias; já quem não, tem direito a cinco dias na chamada licença-paternidade, que não conta com remuneração. Outro benefício também exclusivo de quem gesta é a estabilidade, que proíbe a empresa de desligar a pessoa quando retornar ao trabalho. "Essa falta de suporte faz com que muitas mulheres e pessoas LGBTQIA+ como um todo não confrontem as empresas que trabalham, afinal não existe nenhuma garantia de suporte financeiro ou de que seguirão contratadas após a licença", relata.
Esse possível confronto se dá, em especial, porque com a falta de legislação cabe às empresas o estabelecimento de políticas que beneficiem quem não gesta, sendo necessária a ação de vários agentes: se o RH está disposto a comprar a briga dentro da empresa, quais são as políticas já estabelecidas desta organização, se a gestão apoia ou não a causa e assim por diante.
Mãe e Mãe
Outro desafio encontrado pelas mães é o próprio registro do bebê. O provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça prevê a lavratura do registro de duas mães em caso de reprodução assistida, desde que se apresente uma série de documentos, incluindo laudos da clínica de fertilização, o que já exclui automaticamente casais que optam por outras formas de reprodução como inseminação caseira. "Existe a certidão de nascido vivo que é emitida pelo hospital, que depois de muita luta passou a trazer recentemente os campos de genitor(a) 1 e genitor(a) 2, ao invés de pai e mãe, e mesmo com essa certidão e os documentos da fertilização tem cartório que recusa o registro", detalha a advogada, revelando que o mesmo não acontece com casais heterossexuais cisgênero.
A legislação também só autoriza o nome de ambas as mães na certidão de nascimento se o casal for legalmente casado, porém, caso um homem cisgênero chegue no cartório sem nenhuma relação formal com a mulher que deu à luz, não é exigida nenhuma documentação específica. "São processos burocráticos completamente diferentes e sem nenhum motivo", aponta a advogada.
No momento, segue na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5423/20, proposto por Maria do Rosário (PT-RS), que busca garantir o direito de registro de dupla maternidade ou paternidade a casais homoafetivos que tiverem filhos independentemente do estado civil, mas sem previsão de avanço nas tramitações.
Falta de acesso acentua desigualdade
Lucila aponta que nunca tomou conhecimento de um caso de inseminação caseira em que as mães conseguiram o registro, e consequentemente acesso aos direitos, sem judicialização. "Conforme vai se criando jurisprudência o caminho encurta e hoje já vemos casos onde os pedidos judiciais se dão no começo da gestação e ao nascer já há um parecer, porém, por anos acompanhei crianças com três, quatro anos de idade sem o registro das duas mães", relata, lembrando ainda que o casal precisava apresentar uma série de laudos de assistência social e psicólogos para conseguir o direito de registrar o filho ou filha.
Ainda que o país conte com um programa de reprodução assistida público, via SUS, o tempo médio de espera é de quatro anos, o que faz com que muitas pessoas não consigam esperar, inclusive pelo fator etário, que pode inviabilizar a gestação. Para uma pessoa de 30 anos, a taxa de sucesso do procedimento de fertilização assistida é de 34%. Já aos 45 anos, essa taxa cai para 12%.
"Todo o processo é muito caro, desde o acesso a medicação, passando pelo rastreamento genético e chegando aos procedimentos em si. E isso faz com que a questão do direito reprodutivo seja uma questão de classe, raça e território", finaliza Lucila, fazendo referência ao fato de que apenas oito dos 27 estados oferecem o serviço gratuitamente ou a um custo razoável: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.