Para o Coletivo AMEM, o rolê é revolução
Coletivo que discute racismo e homofobia em suas festas ocupou o segundo fim de semana do festival "Night Embassy", da Jägermeister
A cada nova situação que o artista e educador Filipe Couto, 38, precisa se apresentar a uma nova audiência, ele diz não apenas seu nome e profissão, mas também uma condição que o acompanha nos últimos 13 anos: Filipe, ou apenas Flip, é soropositivo. Seja aos alunos de cada nova turma, na São Paulo Escola de Dança, em palestras, ou em entrevistas, esse costume tem se tornado uma ação política, uma maneira de reafirmar sua existência: "Sempre pontuo que viver com HIV é uma parte da minha identidade."
"Filipe%20Couto%2C%20fundador%20do%20coletivo%20AMEM"
"Sempre pontuo que viver com HIV é uma parte da minha identidade"
Quando soube do resultado, ele passou por um longo período de solidão. Não era apenas falta de informações, mas o senso de pertencimento a uma comunidade, de compartilhar experiências com outros que entendiam o que ele sentia. Decidiu, então, nos anos seguintes, buscar seu grupo.
Flip, que é também um homem preto e gay, é fundador do coletivo AMEM, um grupo multidisciplinar de artistas, ativistas, educadores e produtores pretos e LGBTQIAP+.
O grupo surgiu a partir das festas AMEM, que nasceram em 2016, no bar Igrejinha, em São Paulo. Idealizada por Flip, era uma festa negra de hip hop para pessoas LGBTQIAP+, uma combinação que até então parecia improvável. O nome, inicialmente, fazia alusão à cultura do funk e soul, que possuem raízes na música gospel. Assim como numa igreja, criavam ali um senso forte de comunidade: corpos dissidentes que se saudavam e encontravam uma oportunidade "para fortalecer o lugar de afeto e de cura".
"Filipe%20Couto%2C%20fundador%20do%20coletivo%20AMEM"
"Passamos a mergulhar nessa discussão: o que significa viver com HIV? Quais vidas esse vírus afeta? Não apenas no sentido biológico, mas também social"
Com o tempo, as festas conquistaram o público. De mensais passaram a quinzenais. Em menos de um ano, ocupavam a programação semanal do bar. Em dezembro de 2016, Flip e outros organizadores fizeram uma edição específica para o Dia Mundial de Luta Contra Aids. Queriam com aquele evento escutar pessoas negras sobre suas experiências vivendo (e convivendo) com o HIV. Flip era uma delas. "Passamos a mergulhar nessa discussão: o que significa viver com HIV? Quais vidas esse vírus afeta? Não apenas no sentido biológico, mas também social. Então falamos de racismo, sexismo e genocídio da população negra."
Envolvido com a dança e a cultura hip hop desde a adolescência, Flip sentia falta de espaços de encontros (e discussões) com pretas e LGBTQIAP+. Nascido e criado na Vila Carrão, na Zona Leste de São Paulo, um bairro com poucas famílias negras, ele diz, demorou até que o artista entendesse o que significava pertencer a um grupo. "Por muito tempo, fui o único de muitos lugares: era o único negro nos estudos de dança por muitos anos. Fui a única pessoa gay no espaço da comunidade e no hip hop. Então esse desejo de criar o coletivo veio da necessidade de preencher esses espaços."
"Filipe%20Couto%2C%20fundador%20do%20coletivo%20AMEM"
"A cultura Ballroom ressignifica o sentido de família para pessoas de corpos dissidentes e cria uma estrutura social de cuidado", afirma Flip. "A ballroom permite você ser você mesmo"
Para além do fervo, um dos diferenciais do AMEM é que, antes de cada festa começar, eles passaram a organizar um painel para discutir as vivências dos integrantes para trazer questões como racismo, homofobia, estigmatização de pessoas que vivem com HIV e, fundamentalmente, sobre cuidar de si e do grupo. Mais do que a oportunidade para compartilhar as dores, os painéis também discutiam oportunidades e empreendedorismo: cada noite girava em torno de um tema específico e o costume tornou-se estratégia para conectar semelhantes - e dura até hoje.
Coletivo AMEM + Jägermeister Night Embassy
A relevância, a potência e o propósito do trabalho do Coletivo AMEM, além da energia sem igual com que produzem suas festas, renderam o convite para que o grupo participasse do segundo final de semana do festival Night Embassy, promovido pela marca de licor alemão Jägermeister.
Ao longo de dois dias, o coletivo ocupou o Palacete da Sé com diversas atividades (e festas) que refletiram a identidade e os propósitos do grupo. Intitularam a residência de 'Memórias insurgentes". E nela organizaram oficinas de dança e culinária africana, uma exposição, rodas de conversa e o fervo, ao qual deram o nome de Noites e VIHdas Escuras.
Um dos objetivos do festival é que os embaixadores recebam mentoria de um artista experiente na vida noturna de São Paulo. O AMEM foi acompanhado da coreógrafa Gabb Cabo Verde, fundadora do movimento Celebre seu Corpo.
A partir dessa trocas, o coletivo promoveu uma roda de conversa sobre afro empreendedorismo na vida noturna na última sexta-feira, 14, durante a ocupação artística patrocinada pela Jägermeister Night Embassy, que tem como objetivo de amplificar as mensagens do grupo. Já no sábado, 15, convidaram a deputada estadual de São Paulo Erica Malunguinho para falar sobre artes e tecnologias pretas na noite.
Durante a ocupação, o coletivo também organizou uma exposição, que funcionou como um grande ateliê, dando mostras de um processo criativo em andamento, e uma galeria de arte digital, produzida em uma longa parceria com o Coletivo Coletores. Nas paredes, eles projetaram imagens de corpos que dançam. Outra preocupação do grupo foi compartilhar as memórias dessas pessoas, que são invisibilizadas com frequência fora daquele prédio.
Algumas pautas estavam expostas em cartazes. Além do preconceito, o coletivo reforçou a necessidade de melhorar a qualidade dos medicamentos para quem vive com HIV, reduzindo, assim, os efeitos colaterais. Apesar de tantas discussões e avanços científicos, o preconceito ainda orienta as relações sociais. "A pessoa soropositiva vive uma série de constrangimentos, sendo discriminada regularmente", explica Flip.
Além do aspecto político, não há como deixar de lado a estética criada pelo coletivo, que eles trouxeram com força total para a residência no Night Embassy. Um dos elementos centrais das festas AMEM é a cultura Ballroom, originada na cena underground de Nova York, na década de 1980. Os bailes surgiram da necessidade de espaços de encontros de pessoas queer marginalizadas - em especial, pessoas negras, latinas e trans. "A cultura Ballroom ressignifica o sentido de família para pessoas de corpos dissidentes e cria uma estrutura social de cuidado", afirma Flip. "A ballroom permite você ser você mesmo."
Além do close e da montação, o coletivo levou para as pistas do Palacete da Sé disputas de dança que, ainda que tenham seu lado competitivo, reforçam o senso de comunidade e o acolhimento a todos os corpos e estilos. Para Flip, a cultura ballroom, com o espírito de acolher pessoas estigmatizadas e excluídas do contexto social, ainda faz muito sentido. "O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+". Estar nesse espaço seguro, para o coletivo, é quase uma oportunidade de esquecer os problemas que ainda atingem a comunidade. Nesse aspecto, a festa é revolucionária.
Jägermeister Night Embassy
Ao desembarcar pela primeira vez na América Latina, o projeto busca contar histórias e propor novas experiências e olhares para a noite, recorrendo à arte e a cultura e tendo sempre a diversidade como eixo para as discussões. O projeto começou no início de outubro com a curadoria do estilista Diego Gama, que projetou a programação com uma exposição, onde expôs seu processo criativo, oficinas de costura, um desfile de sua marca - e, claro, as festas. Veja aqui como foi o primeiro final de semana!
"O que ainda vem por aí no Night Embassy São Paulo"
21 e 22/10 - Infiltração
A cultura paraense, berço da artista Ane Oliveira, é destaque na última residência da Night Embassy São Paulo. Ela e o Novíssimo Edgar realizarão oficinas sobre produção musical e performance no palco, além de oferecerem rolês gastronômicos e festas nas duas noites de evento.
Garanta seu ingresso clicando aqui