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Adoção e formação de novas famílias: como é a realidade para casais LGBTQIA+

Famílias precisam driblar preconceitos ao recorrer a serviços básicos, como educação e saúde

28 jun 2023 - 05h00
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Luciano, Rafael e filhos em 2023
Luciano, Rafael e filhos em 2023
Foto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal

Os arquitetos Rafael Escrivão Sorrigotto e Luciano da Silva Rodrigues tinham 26 anos quando decidiram iniciar o processo de adoção. Eles eram de longe o casal mais jovem do grupo de preparação da Vara da Infância e Juventude central da cidade de São Paulo. Também eram o único casal de homens do espaço.

"A gente tava com receio de como ia ser, como iam receber a gente por sermos um casal gay. A gente não tinha referência alguma, não tínhamos com quem trocar", lembra Rafael.

Luciano, Rafael e filhos em 2016
Luciano, Rafael e filhos em 2016
Foto: Divulgação / Arquivo Pessoal

Desde os primeiros meses de namoro, Rafael e Luciano já falavam de casar e ter dois filhos. O casamento aconteceu em 2014. A adoção em 2016. Para realizarem o sonho de se tornarem pais, esperaram 14 meses -11 meses na preparação e 3 na fila. Se tornaram pais de Davi Luiz e Allan, atualmente com 9 e 17 anos, respectivamente.

Em Betim, cidade localizada a 30 quilômetros de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, outro casal se preparava para entrar com o processo de adoção. A gestora Aline Ferreira e a assistente financeira Bruna Ramos, atualmente com 39 e 36 anos, respectivamente, começaram o processo de adoção em 2016. 

"A gente tinha receio, pensando se iriam nos enrolar, mas sempre fomos muito bem recebidas", lembra Bruna. 

O processo terminou em 2018, porque os dois meninos que adotaram, Natan e Derick, agora com 10 e 13 anos, ainda não haviam sido destituídos da família anterior.

Assim que concluíram a primeira adoção, Aline e Bruna iniciaram o processo para a segunda adoção. Elas sabiam que a segunda adoção poderia durar cerca de 4 anos porque o perfil era mais específico: queriam uma menina de 0 a 12 meses. A adoção de Alice, com então 9 meses, aconteceu em 2022. 

"É um perfil mais demorado e mesmo assim não foi tanto, porque adotamos uma menina negra. Se fosse uma menina branca ia demorar muito mais tempo", explica Aline.

Aline, Bruna e família
Aline, Bruna e família
Foto: Divulgação / Arquivo Pessoal

O processo de adoção 

Os processos dos dois casais, embora tenham sido feitos em locais diferentes, foi parecido. As adoções feitas em 2016 foram rápidas porque o perfil das crianças -mais velhas, negras e grupo de irmãos-, não desperta interesse da maioria dos casais na fila de adoção.

"O processo é muito bem desenhado para proteger a criança o tempo todo. A juíza falou no primeiro contato que estava ali para colocar as crianças no lugar certo", conta Rafael.

"Ela disse que não estava pensando no nosso direito de sermos pais, mas no direito da criança ter um pai, que estava ali pelas crianças. Quem define o processo de adoção é o juiz da Vara. Não existe um processo linear, que todo mundo segue", completa Luciano.

Apesar do medo de como poderia ser o processo, Rafael e Luciano não encontraram muitos desafios no processo de adoção. Entregaram a documentação detalhada, que inclui documentos para comprovar a renda e atestados físicos e mentais de saúde, e esperaram 30 dias para participar do primeiro encontro de pretendentes para adoção. É nesse momento que a juíza e a equipe técnica conversam pela primeira vez com os casais ou pessoas que querem adotar.

"Depois disso esperamos até a assistente social chamar. Ela faz de duas a três entrevistas e encaminha para uma psicóloga, que faz mais entrevistas. No nosso caso, na primeira entrevista, a assistente nos vetou. Ela trouxe que pra gente, como casal, tava muito madura a ideia de ser pai, mas ela sentia que a gente precisava entender o que era a adoção", detalha Luciano.

Esse momento, afirmam, foi fundamental para pensarem qual modelo de família queriam construir. O casal, então, ficou 6 meses frequentando reuniões em um grupo de adoção. 

Eles se recordam de ouvir alguns comentários preconceituosos nas primeiras reuniões com o grupo de apoio. "Mesmo no curso, que era um ambiente seguro, ouvimos algumas coisas, como 'lógico que pode ter uma adoção em um casal gay, aquelas crianças estão precisando tanto que qualquer coisa para elas já é melhor'", diz Luciano.

Quando voltaram a falar com a assistente social, estavam prontos. "No primeiro formulário, falamos que queríamos uma criança. Aí voltamos e falamos que queríamos duas. Então o novo perfil era muito raro, por isso nosso processo foi raro. Quando o Fórum cruzou: dois meninos, irmãos, sem nenhum recém-nascido. Éramos o único perfil dessa maneira", explica Rafael.

Aline e Bruna também tiveram uma experiência positiva. "A comarca de Betim é excelente. O primeiro processo de adoção foi muito rápido. Em 2016 a gente já tinha feito a entrevista, o pessoal do Fórum já tinha vindo na nossa casa e ficamos aptas à adoção", conta Aline.

O casal conheceu os primeiros filhos por acaso, em uma festa no abrigo em que as crianças estavam em novembro de 2016. "Conversei com a assistente e ela disse que a gente não estava no cadastro, mas como estávamos aptas. Pedi para eles passarem o Natal com a gente e eles passaram. Quando fomos levar eles no abrigo, aí me ligaram perguntando se queríamos seguir a adoção e eu fui buscar eles", lembra a gestora.

A principal diferença no primeiro e no segundo processo de adoção, explica Aline, é o fato de que antes as crianças iam para a fila da adoção sem a destituição total da família antiga. "Vejo progresso em relação a isso. É uma segurança. Já tiveram casos que pegavam a criança e a família biológica entrava com processo".

Desafios pós-adoção para novos formatos de família

Aline e Bruna contam que quem precisou se adaptar depois da adoção foram elas. "Os meninos vieram prontos. Eles queriam a adoção. A gente teve problemas de comportamentos, porque eles estavam há dois anos morando no abrigo, eram agressivos. Mas escutamos muito os assistentes sociais para fazer dar certo. Tivemos um convívio mais nosso, sem sair muito no começo. Tivemos que ensinar muitas coisas para eles", conta Aline.

Natan e Derick participaram do processo de adoção de Alice. "Eles adoraram saber que iriam ter uma irmã, mas falaram que não queriam outro menino. Dois já estava bom", conta Aline.

Rafael e Luciano também tiveram uma adaptação tranquila. "Os meninos estavam entregues, eles queriam muito isso, então os dois lados, a gente e eles, tiveram uma sintonia muito importante. Isso foi muito em função do papel do Fórum".

Mas encontraram outras dificuldades. "A gente se viu em um lugar de preparação porque começamos a perceber o racismo. Sentimos mais isso do que ser um casal gay", lamenta. 

Para matricular as crianças na escola também encontraram dificuldades. "Na primeira escola que fomos matricular o Allan, tivemos que sentar e a coordenadora mostrou pra gente que o livro iria mostrar que a família era pai e mãe, que não ia considerar a nossa. Isso pesou muito, para encontrar uma escola para eles".

Aline preparou os filhos para os possíveis preconceitos. "Em relação à escola, não tivemos problemas porque eles foram preparados. Uma família não é um pai e uma mãe. Podem ser duas mulheres, dois homens ou uma avó que cria o neto. A estrutura familiar mudou muito. A escola ainda precisa ter ajustes, claro. Em vez de ter Dia dos Pais e Dia das Mães, por que não ter o Dia da Família?", questiona.

Mas enfrentou outras dificuldades. "Tivemos problemas para tirar os documentos deles. Levamos a nova certidão, mas quando viram que eram duas mães perguntaram onde estava o pai. Aí falaram que não ia ter como fazer. Demoramos lá, com os meninos, que presenciaram tudo. Foi muito constrangimento", lamenta Aline.

Em consultas médicas a mesma dificuldade. "Perguntaram quem era a mãe e ficou aquela dificuldade. Mostrei o registro, que tinha os dois nomes. Machuca toda hora ficar explicando que eles são adotados", completa.

Tratamento diferente é LGBTfobia

Bruna Andrade, advogada e fundadora do Bicha da Justiça, projeto que promove a garantia de direitos para população LGBTQIA+, explica que, de um modo geral, os requisitos para adoção são os mesmos, tanto para casais LGBTQIA+ quanto para casais que não são. 

"A adoção, em si, é um procedimento burocrático. É cheio de detalhes, o que é natural, porque estamos falando da vida de uma criança ou de um adolescente", aponta.

A advogada afirma que houve muita evolução desde a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2015, que permitiu que casais do mesmo gênero adotassem.

"Não existem dificuldades fora o que já é usual. Mas ainda existe despreparo, perguntas indiscretas que não são feitas para casais cis héteros. São situações de preconceito enraizado. Um exemplo é o direcionamento de crianças LGBTs para casais LGBTs. É positivo, mas vemos que o plano de fundo é preconceituoso", explica.

Andrade conta que o projeto recebe muitos contatos de casais LGBTs que querem acompanhamento de um profissional jurídico para evitar LGBTfobias ao longo do processo. "É um trabalho preventivo. O processo não caminha sem um profissional jurídico, em muitos casos as pessoas acabam optando por um defensor público. O primeiro trabalho com esses casais é educacional, de mostrar que existe esse direito e que não haverá um impedimento."

Outro momento em que os casais mais acionam o judiciário, conta Andrade, é em relação às escolas e outros serviços depois das adoções. "Existe preconceito dos colegas, que não estão acostumados com essa variedade de composições familiares", explica. 

Em casos de adoções o preconceito é ainda maior. "Quando falamos de uma pessoa adotada já existe o estigma da adoção. Quando falamos de uma pessoa adotada em uma composição familiar fora da cisheteronormatividade a dificuldade é ainda maior. Por isso é importante que os pais conheçam os direitos porque isso é LGBTfobia. Esse tratamento diferenciado é LGBTfobia, que é um crime grave", conclui.

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Fonte: Redação Nós
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