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"Cansativo explicar que você é você": pessoas trans esbarram em burocracia para retificar nomes no Brasil

Entidades do terceiro setor cobram mudanças na regulamentação para ampliar acesso ao serviço

9 jun 2023 - 17h15
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Akira (esq.) tenta retificar nome desde janeiro; Gabriel (dir.) é diretor da ONG TODXS
Akira (esq.) tenta retificar nome desde janeiro; Gabriel (dir.) é diretor da ONG TODXS
Foto: Arquivo pessoal

Desde janeiro deste ano, a engenheira de dados Akira Borba Colen França tenta retificar seu nome em seus documentos. Moradora de Porto Alegre (RS) e pessoa não-binária, ela enfrenta obstáculos como o alto custo para emitir a documentação exigida no processo, a burocracia institucional para realizar a alteração e a falta de informações públicas e claras sobre como proceder.

Graças à atuação da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, ela conseguiu dar início e andamento à retificação. A equipe da Defensoria a ajudou, sem nenhum custo, a reunir os documentos que precisaria para enviar à Justiça de Minas Gerais, estado onde Akira nasceu e é registrada. "Esse processo levou um tempo, cerca de dois meses. Até que eu recebi uma resposta, dizendo que eu não poderia retificar como pessoa não-binária", diz. 

"Ou eu tentava isso judicialmente, o que custaria R$ 4.500, para entrar com um processo e que poderia não dar em nada, ou eu entrava com o processo para retificar como uma pessoa binária. Colocaria 'feminino' na Certidão de Nascimento", continua a engenheira de dados. Ela conta que, por ter percebido quão burocrático era o processo, aceitou continuar com a retificação no feminino, mesmo se entendendo com outra identidade de gênero.

"Refleti muito se eu ia juntar o dinheiro (para uma ação judicial) ou não. O que me fez decidir pela retificação binária foi que eu não aguentava mais aquele masculino ali (no documento). Pensei 'o que precio fazer para tirar aquele masculino dali?'. Para mim, ter meu nome retificado será um alívio. É uma dignidade ser chamado pelo seu nome. Todo formulário que preencho na vida sempre pergunta qual é o meu nome. E eu nunca sei o que colocar. Eu acabei de fazer uma reserva de um hotel, coloquei meu nome social e aí depois pedia a foto do RG. Entrei em pânico e fiquei pensando 'agora vão ver que o nome no RG não é igual ao meu nome social'. É muito cansativo ter que explicar em todo o momento que você é você". 

Além disso, outro fator foi a incerteza de que, no futuro, sua identidade não-binária seria bem aceita em formulários de inscrições, por exemplo, que muitas vezes só possuem as opções "masculino" e "feminino". "Não tinha muita clareza jurídica de como vai ficar isso. Fiquei com medo das consequências disso para a minha vida. Por tudo isso, escolhi a segunda opção". Até o momento, para atualizar os documentos pedidos nos cartórios para o processo de retificação de nome, ela já desembolsou R$ 250. Fora isso, há ainda uma taxa de serviço para o cartório. Ao redor do Brasil, os valores pagos por este serviço variam por região, mas custam em média R$130.

Projetos ajudam a retificar nomes em certidões de nascimento
Projetos ajudam a retificar nomes em certidões de nascimento
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Burocracia

Casos de burocracia, como a enfrentada por Akira, têm sido comuns no Brasil. A legislação brasileira até garante desde 2018 que pessoas trans possam retificar seu nome e seu gênero no registro civil sem a necessidade de ação judicial. No entanto, entidades voltadas para as necessidades da população de travestis e transexuais e que atuam no combate à transfobiaa concluem que o acesso à retificação de nome ainda está escasso no Brasil. Um exemplo disso é o "Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil", uma pesquisa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que mostra que 63,57% das pessoas não conseguiram mudar o nome e o gênero em sua documentação.

O documento da Antra revela como o custo de emissão de documentos, a falta de clareza quanto às exigências feitas pelos cartórios, a necessidade de deslocamento até a unidade e casos de transfobia durante o atendimento são fatores que dificultam que o serviço seja realizado por mais pessoas. Para a retificação, são exigidos até 17 documentos, entre identificações e certidões. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que regulamentou as regras para os cartórios de registro civil, qualquer pessoa com mais de 18 anos pode requerer ao cartório de registro civil de origem a adequação de sua certidão de nascimento ou casamento à identidade autopercebida. O Provimento n. 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça restringe a alteração somente ao prenome e agnome – como Filho, Sobrinho ou Júnior. Não podem ser alterados os nomes de família, nem o novo nome pode coincidir com o prenome de outro membro da família.

Ao Terra, o CNJ disse que há um pedido de providências, de relatoria da Corregedoria Nacional de Justiça, em tramitação sobre o tema. A última movimentação desse processo é de maio deste ano.

Para driblar a burocracia e tentar ampliar o acesso à retificação de nomes, o terceiro setor se organiza e promove projetos para ajudar a população trans neste sentido. O coletivo PoupaTrans, formado por Bru Pereira, Júlia Clara de Pontes e Patrícia Borges, atua em São Paulo em parceria com um cartório para ajudar a humanizar os atendimentos e evitar episódios de transfobia. Até agora, mais de 5 mil retificação de prenome e alteração de gênero já foram realizadas nesta parceria. "A nossa relação é muito importante porque todo o sistema tem deixa em maior vulnerabilidade quem já está vulnerabilizada. A gente precisa repensar uma política afirmativa e isso inclui também marcas, pessoas aliadas", diz Patrícia.

Outra iniciativa é o programa #RespeitaMinhaIdentidade, promovido pela ONG TODXS e a Antra. Nele, cerca de 700 pessoas trans e travestis têm acesso à retificação de prenome gratuita. A ação vem sendo realizada com o suporte de 15 organizações espalhadas pelo país. Gabriel Romão, co-Diretor da TODXS, diz que "boa parte das pessoas que participaram do programa são pessoas de regiões periféricas. Muitas delas não têm conhecimento tecnologico ou acesso à renda para ir atrás desse direito. Isso mostra um problema político e social sobre a retificação". 

Fonte: Redação Terra
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