Cantora Jotta A abandonou universo gospel para se assumir trans: ‘Me sinto inteira’
Milhões de fãs, uma indicação ao Grammy Latino: nada poderia impedir a transição de Ella, nome retificado da artista
Jotta A sempre foi o nome artístico da cantora Ella, contradizendo a ordem comum, onde primeiro surge-se um nome de batismo e, depois, um nome artístico. Jotta A já era Jotta A antes de ser Ella. O potente nome Ella foi firmado nos documentos da artista depois que ela se assumiu mulher transgênero.
A decisão firme e corajosa, conta Ella ao Terra NÓS, não a fez jogar fora apenas seu antigo RG. Ela abriu mão, também, de uma consolidada carreira entre o público evangélico e de milhares de fãs para se escancarar para o mundo. O anúncio da transição de gênero veio dois anos depois de Ella se assumir bissexual. Trinta e dois anos depois de a homossexualidade ser retirada do Código Internacional de Doenças pela OMS.
Ella sempre foi ela. Desde menininha, já vestia as roupas da irmã mais velha, e era repreendida veementemente pela mãe. Os pais, evangélicos da Assembleia de Deus, eram frequentadores assíduos da igreja, e foi dentro dela que Ella começou a cantar, aos três anos. Aos seis, ela gravou sua primeira demo. Saiu, então, de Rondônia e foi morar em São Paulo com os pais, que abriram mão de uma vida estável para investir na precoce carreira da filha.
Das portas de pequenas igrejas de bairro, em que Ella e os pais vendiam seus discos, ela se viu, num pulo, cantando louvor para milhares de pessoas. Aos 12 anos, participou de um programa de talentos apresentado por Raul Gil e venceu a disputa. Foi quando a infância precisou ceder espaço para as infindas responsabilidades de uma jovem artista. Ella se tornou profissional. Colecionou milhões de fãs pelo mundo.
VEJA a carreira de Jotta A e entenda sua trajetória profissional
Infância abreviada
Tudo isso acontecia ao mesmo tempo em que ela começava a se perceber como pessoa, em que começava a questionar sua própria sexualidade e a se desenvolver. “Tudo isso acontecia em um meio que me podava, em que eu não tinha referências para me descobrir. Eu sentia que tudo o que eu era estava errado”, conta.
Ella sentia falta de fazer coisas que crianças costumam fazer e de não ter imensas responsabilidades. “Não tinha ideia do que estava acontecendo, não deu tempo de assimilar. O crescimento da carreira tão rapidamente foi um baque. Por causa da religiosidade, me privei de muitas coisas, como o autoconhecimento. A carreira tomava todo meu tempo, e o pouco tempo que tinha na escola foi onde pude tentar me descobrir”, conta.
Crescer dentro da religião, segundo a artista, a fez não ter perspectivas de nada que não fosse a vida na igreja. “A igreja era minha base, e frustrar as pessoas que faziam parte daquilo era como matar uma parte de mim. Quando eu pensava em gênero, em sexualidade, me reprimia. Não me permitia sequer pensar. Porque sabia que aquilo anularia uma parte importante, que era a igreja.”
Momento de libertação
Mas o tempo foi passando, a vida adulta, chegando, e Ella começou a entender que não havia como fugir de quem era. Aos 22 anos, no início da pandemia de coronavírus, ela se assumiu bissexual. Morava na Colômbia, os shows estavam começando a ser cancelados devido ao lockdown, e ela entendeu que era aquele o momento de se libertar de tantas amarras.
O estalo, ela conta, aconteceu enquanto visitava um grupo de amigas transgênero. Elas se arrumavam para uma festa, e Ella viu seu reflexo ali. Entendeu, de uma vez por todas, a mulher que era. “Comecei a fazer várias perguntas a elas, sobre transição, sobre terapia hormonal… Não falei sobre como me sentia, mas perguntei milhões de coisas. Cresci muito reprimida, não sabia como seria a transição, nem como me expressaria na rua. Cheguei em casa, comecei a pesquisar e a entender que uma nova pessoa nasceria dali em diante. Quando saí pela primeira vez com um salto e de [peruca] lace, parecia que estava pronta para conquistar o mundo”.
“A primeira pessoa para quem falei sobre sexualidade e gênero foi um amigo, o único que me apoiou logo de cara. Quando tive essa força por parte dele e decidi que me assumiria, falei com meu assessor. Sabia que isso impactaria na minha carreira [Ella cantava em uma banda gospel] e na vida das demais pessoas que trabalhavam comigo. A reação dele foi chorar. Ele sabia que aquilo afetaria toda sua vida financeira, eu entendo. Mas imagine a pressão que senti?”
A artista, então, decidiu voltar para o Brasil e se revelar para sua família. O acolhimento veio de onde ela menos esperava, da irmã. Ela e os sobrinhos da artista a abraçaram e, imediatamente, passaram a tratá-la no feminino. Com os pais, a situação foi diferente. Inicialmente, ela se assumiu como uma pessoa não-binária [que não se define como homem nem como mulher].
“Sabia que seria um choque muito grande, então achei melhor fazer isso aos poucos. Meus pais não me aceitaram de imediato, e eu já imaginava que aconteceria. Mas, hoje, nossa relação é boa. Eles me chamam de ‘filha’ e tenho certeza que, logo, vão assistir aos meus shows.”
Mas a maior dor do processo para Ella foi o ódio que recebeu daqueles que, por anos, se declararam seus fãs. A artista conta que sofreu ameaças de todos os tipos, e que seu maior medo foi pela família – os pais também foram ameaçados dentro dos núcleos evangélicos que frequentavam. “Recebi ameaças de morte e sofri muitos ataques de ódio. Com o tempo, aprendi a lidar. E por isso me afastei totalmente da religião. Hoje, só acredito em Deus”.
"Ainda mais inteira"
Hoje, Ella segue a sonoridade do pop e R&B, e assim que mudou de nicho foi contatada por produtores que já tinham trabalhado com Anitta e Ludmilla. Ela entendeu que precisava de pessoas com experiência para conhecer o novo tipo de música. Ella decidiu manter o nome artístico Jotta A, e já lançou sete singles e um álbum.
No ano passado, ela viveu como a mulher que sempre foi seu primeiro mês de maio – símbolo para a resistência LGBTQIA+ por ter sido o mês em que a OMS tirou a homossexualidade da lista de doenças. “Neste maio, me sinto ainda mais inteira. Foi como nascer de novo. Não me enxergo mais como era, não me imagino mais daquela forma. Estou tão completa. Olho para minha fase em transição como uma fase de muita coragem. Abrir a porta e colocar a cara à tapa, na rua, foi desafiador e revigorante. Estou cada dia mais pronta para enfrentar o mundo”.