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homofobia, luta LGBTQIA+, LGBT  Foto: Getty Images

Keron Ravach foi assassinada aos 13 anos, assim como muitas outras trans no Brasil

No Nordeste, onde índices de violência são maiores, pessoas trans destacam importância do reconhecimento da identidade de gênero

Imagem: Getty Images
  • Bruno Almeida, de São Paulo Bruno Almeida, de São Paulo
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28 jun 2024 - 05h00
(atualizado às 16h04)

“Eu conheci a Keron através de outros amigos em comuns, que já brincavam de carimba (jogo também conhecido como queimada) lá no Cruzeiro, um bairro aqui de Camocim. A gente foi se aproximando (...) e ela conseguia se abrir comigo. Eu lembro que ela tinha vontade de ser blogueira”, lembra o chefe de cozinha Ray da Costa Fontenele sobre a amiga Keron Ravach, adolescente transgênero assassinada em 2021, quando tinha apenas 13 anos. 

Keron Ravach foi morta a pauladas no Ceará
Keron Ravach foi morta a pauladas no Ceará
Foto: Arquivo pessoal/Luma Andrade
  • - Este é o quinto e último episódio da série de reportagem O Brasil também é LGBTQIA+, que retrata a diversidade e as disparidades do País a partir de histórias da comunidade de Norte a Sul. Leia também o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto episódio.

Moradora de Camocim, no Ceará, Keron foi espancada até morrer, por um adolescente de 17 anos, apreendido após o crime. "Foi como uma bomba a notícia. Nós que éramos amigos dela ficamos muito abalados, muito tristes. Ninguém merece morrer da maneira que ela morreu (...) Acredito que não melhorou quase nada (a questão da transfobia). Temos muito a avançar, temos muito a exigir", continua. 

A percepção de Ray é verdadeira. Em especial em alguns estados do Nordeste, as taxas de violência contra pessoas LGBTQIA+ são as mais elevadas do país: no Ceará, 32 pessoas foram mortas em 2022 por LGBTfobia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em Pernambuco, foram 30 casos. Os dois estados lideram o ranking divulgado no ano passado.  

O mesmo levantamento aponta os dois Estados como os que mais registraram os crimes de lesão corporal dolosa em 2022: no Ceará, houve 435 registros, enquanto em Pernambuco, foram 540.  

No crime de racismo por homofobia ou transfobia --quando estes crimes são registrados como racismo, por não haver legislação específica sobre o assunto no Brasil --, Sergipe lidera: seus indicadores aumentaram 447,1% de 2021 para 2022, o maior crescimento percentual da lista nacional. De 2 casos naquele ano, o número subiu para 11 registros. 

Quando se olha para a região Nordeste e para o recorte da violência com pessoas trans, a situação se agrava ainda mais. Um relatório divulgado pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil) revelou que 321 pessoas trans foram vítimas de assassinato em 2023. O Nordeste lidera as estatísticas do dossiê Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil e concentra 39,5% dos casos.  

Para a Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), a questão da segurança é reflexo de uma falta de cuidado com pessoas LGBTQIA+, e em especial com pessoas trans. "É um descaso não só social, mas um descaso das instituições", afirma Sophia William, porta-voz da instituição, que há 16 anos oferece cursos de qualificação profissional para pessoa lésbicas, bissexuais e, em especial, transgênero. Além disso, a organização não-governamental mantém um núcleo de acolhimento para vítimas de violência. 

Muitas vezes, quando a pessoa faz a primeira denúncia, essa denúncia não é investigada e não é analisada com cuidado. Quando essa pessoa vem a óbito é que tem uma 'validade', porque vira um número, uma estatística para estar estampada nas capas de jornais. Mas antes disso, essa vida é como se ela não existisse e não tivesse o direito de ter segurança -Sophia William

Sophia afirma que a população de pessoas trans e travestis é quem mais sofre agressões, desestabilidades afetivas e emocionais, e que tem menos oportunidade de empregabilidade. "A Amotrans vem com esse pensamento de que a educação é o primeiro passo para que a gente consiga rebater essa violência", explica. 

Questionado pelo Terra sobre os destaques da pasta para combater a LGBTfobia, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) disse estar empenhado em acompanhar os dados existentes sobre a violência contra pessoas LGBTQIA+ e gerar informações concretas por meio de suas ações e programas.

A pasta cita o Disque 100, canal gratuito para denúncias, e o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma que reúne informações e indicadores sobre grupos sociais e temas prioritários do MDHC, como os dois mecanismos para coleta de dados atualizados periodicamente que direcionam suas ações.

Além disso, por conta do Mês do Orgulho LGBTQIA+, o ministro responsável pela pasta, Silvio Almeida, anunciou o início das entregas de políticas públicas relacionadas ao tema, que incluem:

  • o Acolher+, programa de fortalecimento das Casas de Acolhimento LGBTQIA+ da sociedade civil; 
  • o Empodera+, uma parceria com os estados do Maranhão, Espírito Santo, Ceará e Pará, para promover a elevação escolar, a formação em direitos humanos e a preparação para o mercado de trabalho com o pagamento de bolsas para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social; 
  • e o Grupo de Trabalho de Enfrentamento da Discriminação contra pessoas LGBTQIA+ em Ambiente Digital, para trabalhar especialmente em casos envolvendo pessoas trans.

"Infelizmente, em todo o País há casos de violência contra pessoas LGBTQIA+, desde as simbólicas e psicológicas, em que, muitas vezes, a vítima demora muito para identificar, até casos de homicídio, fruto da LGBTfobia, e por isso, geralmente, perpetrado com requintes de crueldade”, afirma a professora e coordenadora dos Observatórios Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Patrícia Rosalba.    

ONG de Pernambuco ajuda a garantir cidadania de pessoas trans
ONG de Pernambuco ajuda a garantir cidadania de pessoas trans
Foto: Acervo AMOTRANS-PE

Para ela, ambientes e instituições como a família, a escola, a igreja, instituições de segurança e de saúde podem produzir a LGBTfobia. "Uma outra questão que precisa ser refletida é sobre a subnotificação de crimes tanto no âmbito da segurança pública brasileira quanto no da saúde", alerta.  

"Em estados em que as estatísticas atuais apontam para uma notificação mais expressiva, pode haver um trabalho mais efetivo das instituições públicas no registro dos casos de LGBTfobia. Em contrapartida, nos últimos anos houve o recrudescimento do discurso de ódio e, consequentemente, a maior abertura para demonstração de intolerâncias e aniquilamento no que diz respeito à diversidade". 

Segundo Patrícia, a presença de instituições, movimentos sociais, conselhos, organizações não-governamentais e universidades que dialogam sobre questões LGBTQIA+ pode potencializar e ratificar as políticas públicas para esta população, em especial para pessoas trans, na região. Além disso, ela aposta na educação como forma de garantir mais direitos.  

"Uma educação que preze pelo respeito e seja contra todas as formas de violência é responsabilidade de todas as pessoas e precisa estar presente na família, na escola e nas demais instituições. A nossa luta enquanto sociedade deve ser pelo amor", pondera a professora. 

Professora é a primeira travesti a concluir um curso de doutorado no país
Professora é a primeira travesti a concluir um curso de doutorado no país
Foto: Arquivo pessoal/Luma Andrade

Luma Nogueira de Andrade é prova de que a educação pode transformar a realidade de pessoas trans. Pesquisadora e professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, no interior do Ceará, ela é a primeira travesti a concluir um curso de doutorado no país, após muito esforço. Natural de Morada Nova, no interior do estado, e filha de agricultores, ela cita a origem pobre como o primeiro obstáculo que encontrou, já que o pai preferia que ela trabalhasse, em vez de estudar. 

Luma é a autora do livro Travestis na Escola: Assujeitamento e Resistência à Ordem Normativa
Luma é a autora do livro Travestis na Escola: Assujeitamento e Resistência à Ordem Normativa
Foto: Arquivo pessoal/Luma Andrade

Desde cedo, Luma percebeu ser uma criança que não se enquadrava em padrões e, aos 15 anos, iniciou o processo de adequação de gênero. "Sofri muita rejeição por ser considerada no masculino. (...) (O gênero feminino) não era algo que eu podia esconder, fazia parte da minha existência. Sofri muito na escola, na família, na sociedade e na religião evangélica. Fui expulsa de casa por causa da minha identidade e tive que me virar muito cedo. Precisei me prostituir para sobreviver, mas continuei estudando", relatou. 

Com todas as dificuldades na escola, onde também sofreu violências, ela conta que não tinha direito à merenda, porque precisava ficar "enclausurada" em sala de aula para não ser espancada por outras crianças. Além disso, não utilizava o banheiro, porque não era aceita. "Tive que viver em uma escola que limitava a minha existência", lembra. Mesmo diante dessas adversidades, a vontade de superar a impulsionou.  

Não havia como me moldar ao que queriam, era algo da minha natureza, e não tinha a opção de me esconder. A educação foi minha ferramenta de libertação e, apesar de todos os obstáculos, continuei a buscar conhecimento e lutar por minha dignidade e identidade - Luma

Após concluir o Ensino Médio, ela chegou à universidade, ao mestrado e ao doutorado, trajetória ainda distante para a maioria das pessoas trans do Brasil. "Quantos e quantas não procuraram um emprego formal porque ainda têm medo de não ser aceita e porque não têm coragem de apresentar a identidade com o nome anterior, com o nome que não representa, o nome de registro", pontua ela, que também é autora do livro Travestis na Escola: Assujeitamento e Resistência à Ordem Normativa

Professora atua na Unilab, no Ceará
Professora atua na Unilab, no Ceará
Foto: Arquivo pessoal/Luma Andrade

A referência de Luma é ao processo de retificação de nomes e documentos de pessoas transgêneros maiores de 18 anos, realizado por Cartórios de Registro Civil brasileiros desde 2018 sem necessidade de procedimento judicial, nem de comprovação de cirurgia de redesignação. Em cinco anos da permissão, o número de alterações cresceu quase 100% no país e, até 2023, somavam 13.444. Ano passado foi o ano com mais retificações no Brasil, com 4.156 atos.  

Para ampliar o acesso à retificação documental a mais pessoas trans, a Defensorias Públicas do Brasil têm ajudado na correção, que é feita mediante pagamento de taxas ao cartório de nascimento da pessoa. Quando a solicitação chega aos cartórios via Defensoria, o serviço é feito de forma gratuita, incluindo a emissão da nova certidão de nascimento. Só a Defensoria do Ceará contribuiu com 1.320 retificações de nome e gênero de pessoas trans e travestis entre junho de 2018 e dezembro de 2023 -- em 2017, quando ainda era obrigatória a judicialização de qualquer caso, a Defensoria deu entrada em 17 processos. 

"(A retificação documental) é o reconhecimento da identidade de gênero da pessoa. É o primeiro ato para a sua existência. (...) O dispositivo legal que nós conquistamos nos garante a possibilidade de reivindicar do Estado e da sociedade o reconhecimento da nossa identidade e da nossa existência, o respeito. Mas não basta. Nós vamos ter que ir para a disputa para tornar isso que está escrito em prática. Nós precisamos ter essa consciência política para entender que é importante ter esses dispositivos legais, mas que eles não bastam. Temos que ir para o enfrentamento, para as garantias", finaliza Luma. 

Fonte: Redação Terra
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