"Muito mais do que um lugar seguro para dormir": instituição acolhe LGBTs expulsos de casa no Rio
Há nove anos, Casa Nem recebe membros da comunidade em dificuldade e inspira sociedade mais acolhedora e fraterna
"Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove."
Encontrado em um panfleto no chão das ruas do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, estes versos do poema Saber Viver, da goiana Cora Coralina, resume perfeitamente o trabalho da Casa Nem junto à população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social neste mesmo bairro carioca. Criada há nove anos, o espaço de acolhida recebe pessoas da comunidade que foram expulsas da casa dos pais por causa de sua orientação sexual ou por outros motivos que os levaram a morar na rua.
Este gesto de empatia promovido pela instituição muda destinos e abre portas de oportunidade para muitas pessoas da comunidade, como é o caso Wescla Vasconcelos, que é ex-assessora de Marielle Franco, vereadora que foi brutalmente assassinada em 2018.
Ela, que se reconhece como uma mulher trans, foi acolhida na Casa Nem por cerca de 8 meses, entre o final de 2017 e o começo de 2018. Neste período, a pesquisadora e atriz participou de um processo seletivo e conquistou uma vaga de assessora parlamentar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, onde trabalhou de 2018 até dezembro de 2022.
“A Casa Nem me ensinou sobre amor, respeito, acolhimento e saúde mental. Lá partilhamos tudo: afeto, comidas, roupas. Nosso objetivo sempre é diminuir a miséria e a vulnerabilidade social das pessoas LGBT+. Por conhecer este espaço, acredito que o amor e o respeito podem transformar o mundo", afirma Wescla sobre a instituição, que está fechada para reformas desde o fim da pandemia de Covid-19, e tem previsão de reabertura para o próximo mês.
Tenho gratidão pelo acolhimento que a Casa Nem me deu, que não foi somente a mim, mas a milhares de pessoas LGBT+, sobretudo negras e nordestinas -- Wescla
Vivendo a máxima de "uma vez Casa Nem, sempre Casa Nem", Wescla continua colaborando na instituição. Nascida no distrito chamado Aracatiaçú, localizado no município de Sobral (CE), ele colabora com ações de acolhimento, formação política, cine debates, e outros eventos desenvolvidos pelo espaço.
"Só tenho gratidão pela Casa Nem, que é uma escola da vida para mim. Aos 21 anos, cheguei ao Rio de Janeiro, e, hoje, aos 28, sou atravessada por esta instituição, que me ofereceu oportunidades de aprendizado, autocuidado, saúde mental, e acolhimento", afirma.
Já Lohana Carla da Silva encontrou na Casa Nem uma rede de solidariedade e conseguiu "ter uma vida mais tranquila", como a própria diz. Para fugir da LGBTfobia de sua família, ela, que nasceu no interior de Pernambuco, decidiu vir sozinha para o Rio de Janeiro, onde "lutou muito para sobreviver".
"Aqui, assumo a minha identidade de gênero com muita liberdade, mas enfrentei na solidão todas as dificuldades da vida.
Se tiver alguma dificuldade, tenho pessoas que farão o possível para me ajudar, desde um caso de violência até uma cesta básica", afirma Lohana, que atualmente mora na Favela da Maré e sonha em cursar Serviço Social.
Mulher trans negra, Lis Lemes não foi abrigada pela Casa Nem, mas sabe da importância do espaço para as demais pessoas da comunidade. Estudante de Gestão Pública e Comunicação Social, ela já atuou como assessora na Coordenadoria da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro (CDS-Rio) e se identifica com a missão da instituição, que, segundo ela, colabora para a construção de uma sociedade mais inclusiva.
"O nome 'Casa Nem' já chamou minha atenção por ser provocativo e reflexivo. Ao salientar ausências, o nome representa a realidade de muitas pessoas trans e travestis que não possuem um lar seguro e acolhedor", afirmal.
A idealizadora e fundadora da Casa Nem, Indianarae Siqueira, afirma que sua inspiração para criar o espaço era "proporcionar oportunidade que não tive".
Apesar de ser chamada de mãe por alguns ex-moradores da Casa Nem, Indianarae não se sente à vontade neste posto. Porém, ela reconhece que as pessoas que foram abrigadas pela instituição criam vínculos parecidos como o de uma família.
"Tenho um sentimento de dever cumprido com a comunidade. Nós acabamos sendo uma família, muitos temos histórico de expulsão da casa dos pais, e, com isso, íamos nos ajudando e cuidando uns dos outros”, diz ela, que é pré-candidata à vereadora do Rio de Janeiro.
"Atualmente, existem grupos de familiares de pessoas LGBTs que buscam acolher esta população. Antigamente, não tínhamos nada disso, éramos 'nós por nós'", relata.
Porém, as histórias de violência e sofrimento insistem em continuar entre pessoas LGBTs. Com isso, Indianarae criou um método de recepção de acolhidos a fim de evitar maiores dores.
"Acolhemos primeiro, e depois vamos sabendo da vida da pessoa. Isso é para não sofrer muito, porque ainda temos histórias muito impactantes no meio LGBT+. Se sofrer junto, não consigo nem ajudar", conta. "Meu objetivo é que elas também vão embora e formem outras redes onde estiverem", completa.
Quero que a Casa Nem inspire as pessoas para uma comunidade LGBTIA+ mais aberta e mais acolhedora com os membros que estão passando por dificuldades -- Indianarae Siqueira