'Nunca brincou de boneca, como vai querer ser mãe?': casais LGBTQIA+ encontram desafios para diversidade familiar
No Brasil, quase 5 mil crianças e adolescentes esperam por um lar; Sudeste lidera ranking de adoções homoparentais
Juntas há dez anos, a professora Tânia Magali Santos e a bancária Clarissa Martins Santos Silva não demoraram a fazer os primeiros planos para adotar uma criança. "Já na nossa primeira conversa, eu perguntei se ela tinha vontade de ser mãe, até para eu entender a motivação dela em aceitar os meus dois filhos, que eram adolescentes, e, um dia, quem sabe, entrar nesse sonho juntas", lembra Tânia.
- Este é o primeiro episódio da série de reportagem O Brasil também é LGBTQIA+, que retrata a diversidade e as disparidades do País a partir de histórias da comunidade de Norte a Sul. Leia também o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto episódio.
Três anos após se conhecerem, elas oficializaram a união. Um ano depois do casamento, entraram na fila para adotar. Oito meses depois, Gael chegou à família. Para a professora moradora de Santo André, na Grande São Paulo e mãe do Gael juntamente com Clarissa desde 2020, o processo foi burocrático, "mas necessário". Foram muitos documentos e muitas entrevistas.
Até encontrarem Gael, elas ainda não haviam considerado a possibilidade de serem mães de uma criança com síndrome de down. "Então o Gael foi uma grande surpresa nesse sentido. A melhor delas".
O encontro dos três foi marcado por muitas lágrimas, risadas, mas muito amor e conexão. "Em momento nenhum ele estranhou. Ele não chorou nada. A impressão que a gente tinha é que ele estava esperando a gente chegar. E ele olhava para a gente, tipo assim: 'por que vocês demoraram meses?', com um olhar questionador, curioso. Minha esposa só chorava. Eu tinha chorado tudo e mais um pouco, antes. Eu só ria, e ela chorava."
Costumo dizer que uma mãe biológica demora nove meses para criar vínculo, para amar aquele ser humano que está crescendo dentro dela. Quando você adota, a gente ama que nem macarrão instantâneo, em três minutos o amor brota. A criança olha para você e você já está loucamente apaixonada por ela" - Tânia Magali Santos
Atualmente, só no estado de São Paulo, onde a família de Gael vive, há 1.220 crianças e adolescentes para adoção. Consultado pelo Terra, o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) aponta que São Paulo concentra aproximadamente 55,40% do total de crianças para adoção na região Sudeste e cerca de 25,37% do total de crianças para adoção em todo o Brasil.
Há cinco anos, desde que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a disponibilizar os dados do SNA, São Paulo lidera o ranking brasileiro das adoções homoparentais -- realizadas por casais do mesmo gênero --, com uma média de 76 adoções por ano. Só em 2023, foram 98. Entre 2021 e 2023, 50.838 crianças foram oficialmente registradas por casais homoafetivos no Brasil, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
Ainda que diversos casais homoafetivos, como Tânia e Clarissa, estejam dispostos a ajudar a diminuir a fila de 4.809 de crianças e adolescentes sem um lar no Brasil, frequentemente encontram obstáculos.
"No nosso relacionamento, nós fomos muito questionadas de tudo. 'Para que casar, se vocês já moram juntas?' Depois, 'por que adotar uma criança?'. Minha esposa não performa a feminilidade, então o questionamento da família era 'Clarissa, você nunca brincou de boneca, como que você vai querer ser mãe agora?' (...)", relembra Tânia.
Mas, apesar de todos os comentários com tom de preconceito, a professora destaca o apoio familiar. "Na nossa família a gente teve alguns questionamentos num primeiro momento, mas depois todo mundo abriu muito o coração quando chegou o Gael. Em relação ao processo jurídico, a gente não teve nenhuma questão. Mas durante o processo, a gente ouvia nos grupos de adoção relatos de pessoas que estavam em outros estados falar sobre preconceito nos fóruns, principalmente, de juízes muito conservadores."
Mesmo com esses relatos, desde 2015, a adoção por casais homoafetivos está autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, desde o final de 2023, uma resolução do CNJ determina a tribunais e juízes o dever de combater qualquer discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero de pretendentes à adoção.
O texto proíbe manifestações contrárias a pedidos pelo fato de os casais serem homoafetivo ou formado por pessoas transgênero e também inclui pretendentes à adoção monoparental, quando um único adulto adota uma criança, adolescente ou um grupo de irmãos. A resolução do CNJ teve origem em um ofício apresentado ao conselho em junho de 2023 pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES).
Ao Terra, a assessoria de imprensa do CNJ afirmou que o órgão está comprometido em criar uma sociedade plural, isenta de discriminação relativa à orientação sexual ou de gênero, além de promover uma "cultura de respeito à diversidade e de garantia dos direitos humanos no âmbito do processo de adoção".
Na segunda colocação do ranking nacional no SNA, Minas Gerais também mostrou um crescimento notável no número de adoções homoparentais, saltando de 10 adoções em 2019 para 53 em 2023. Uma das famílias que cresceu nesse período foi a do servidor público municipal Ernandes dos Santos Ferreira e do farmacêutico João Carlos Duarte da Silva, moradores de Uberaba, no Triângulo Mineiro.
Pais do Ezequiel e do Ismael, o casal está junto desde 2014. Com a união oficializada desde 2015, ambos também tinham o sonho de serem pais. "Ficamos um ano e seis meses na fila, sem contar o tempo para a habilitação ocorrer de fato. Então, sem dúvidas, controlar a ansiedade foi o maior desafio", brinca Ernandes.
"Adotamos gêmeos. Um deles estava hospitalizado, sem perspectiva de vida, porque sofreu duas paradas cardiorrespiratórias graves, que o deixaram com sequelas e paralisa cerebral. Nada disso foi fator limitante para nós. Mas ainda éramos os 17º da fila. Os 16 pretendes anteriores a nós optaram por nem conhecê-los e disseram não", lembra o servidor público.
A adaptação à família teve desafios e resistência externa. "Muitas perguntas inconvenientes em todos os lugares. Tipo 'cadê a mãe? Não tem mãe? Mas vocês dão conta?'. Mas o fato de continuarmos existindo, resistindo e mostrando para a sociedade que nós, assim como qualquer ser humano, mostra que somos capazes de criar, educar, dar acessos, amar e sermos amados. Amor é amor, ele não tem gênero".
Nós plantamos a nossa existência mostrando para todos que somos reais e somos pais hoje, seremos avôs amanhã. (...) Vivemos, sim, em um mundo que nos desencoraja de muita coisa, mas que não nos impede" - Ernandes
Pais de gêmeos há seis anos, Erandes não esconde o desejo de ampliar ainda mais a família e colocar em prática o terceiro 'projetinho de vida'. "Vamos plantar mais uma florzinha em nosso jardim e iremos adotar uma menina, para a completar e fazer nossa família ainda mais linda", conta, sem esconder o sorriso e a alegria no olhar.
Advogado, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de livros sobre questões LGBTQIA+, Renan Quinalha entende que o direito civil para casais homoafetivos teve avanços desde 1988, com a Constituição Federal. Além disso, nas últimas décadas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que a estrutura familiar também vem mudando em várias maneiras.
A família dita tradicional brasileira, com pai, mãe e filhos, já é minoria. Muitas famílias são monoparentais, com avós que cuidam de netos, pais que cuidam solo de seus filhos... A família já não é mais esse espaço da ligação do sangue, mas da ligação pela fé, pelo cuidado, pelas redes de solidariedade. Isso é um avanço fundamental no ponto de vista civil" - Renan Quinalha
No entanto, apesar de o direito já adquirido por casais homoafetivos, a adoção segue pauta de legisladores mais conservadores e, por isso, Renan faz um alerta. "A gente não tem nenhum projeto reconhecendo o direito às famílias (com casais homoafetivos que adotaram), mas tem projetos contrários aos direitos dessas famílias que ainda andam no Congresso", pontua o professor, citando o avanço do Estatuto da Família no Congresso Nacional.
"Hoje, já está claro que reconhecer as famílias homoafetivas não significa impor essa configuração para todo o resto da sociedade, como aconteceu com a família hétero-patriarcal (famílias em que a figura masculina, cisgênero e heterossexual tem supremacia sobre demais formas de identidade de gênero e sobre outras orientações sexuais), que era tido como modelo universal e o único admitido pelo direito, pelo estado e pelas religiões", completa Renan.