Pai se reconhece como homem trans após apoiar transição do filho de 4 anos: "Me encorajou"
Terra conta a história de Gustavo e Eduardo, duas crianças trans que recebem apoio da ONG Mães pela Diversidade
"Você está vendo esse espelho aqui? Quando eu olho para ele, eu não me vejo. Eu não me sinto como uma menina, mas sim como um menino." Com quatro anos de idade, Gustavo explicava para a família o desconforto com relação ao seu gênero de nascimento.
"Ele se aproximou e falou: 'Se você me entender, você poderia me chamar por outro nome?'", contou Rafael Batista, 36, que é um homem trans, pai do menino, que hoje tem oito anos.
Mas se engana quem pensa que Gustavo sofreu alguma "influência" para sua transgeneridade, pelo contrário. Foi a partir da coragem e do processo do filho que Rafael se entendeu como homem trans.
"Até então, eu me reconhecia como uma mulher lésbica, mas conforme fui entendendo o Gustavo e a transgeneridade, percebi que nunca me encaixei no corpo lésbico. E o Gustavo, querendo ou não, me ajudou muito nisso, me fortaleceu e encorajou, porque o que essa criança passou na infância me mostrou que força que ele tem, eu também poderia ter”, declarou o pai, que iniciou a transição há um mês.
Primeiros sinais
De acordo com Rafael, Gustavo começou a dar sinais de que se identificava com o gênero oposto por volta dos dois anos de idade, mas, até então, a família desconhecia a possibilidade da transgeneridade.
"Ele rejeitava tudo. Quando eu colocava um vestido, ele tirava e colocava as roupas do irmão, mas não me passava pela cabeça que ele pudesse ser uma pessoa trans. Só depois que ele se abriu conosco, o que passou a fazer sentido”, afirmou Rafael.
Apesar de ter ficado 'em choque', não apenas pela ausência de conhecimento sobre crianças trans, mas também pelo receio do futuro, o pai conta que apoiou o filho desde o início.
"Eu perguntei como ele gostaria de ser chamado e ele respondeu: 'Rafael'. Aí eu respondi: 'Tá bom, Rafael', aí ele correu, pulou, e uns quinze minutos depois retornou: 'Acho que Rafael não combina comigo, mas Gustavo combina'", contou o pai emocionado.
Rafael conta que o semblante do filho mudou desde que ele se reconheceu enquanto Gustavo, que até então era descrito como uma 'criança depressiva' e 'introspectiva' por professores e funcionários da escola. Ainda assim o pequeno enfrentou muitos desafios desde o início da transição, principalmente no colégio.
"Nós descobrimos que o Gustavo estava sofrendo agressões físicas e psicológicas. Quando abrimos um Instagram para falar sobre o caso e a violência na educação, começamos a receber até ameaças de morte. Chegou a um ponto de não conseguirmos sair de casa, com medo de que acontecesse alguma coisa", revelou Rafael.
Em meio às transfobias, Gustavo e a família, que na época moravam em Fortaleza (CE), conheceram a Casa Chama, ONG que presta apoio a pessoas trans e travestis. Amparados pela iniciativa, a família, que é natural da Paraíba, se mudou para São Paulo (SP) e pouco depois descobriu o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Primeiro ambulatório do país a atender menores de idade em processo de transição, o Amtigos auxilia, atualmente, 136 crianças e 169 adolescentes transgêneros, que recebem atendimento gratuito com psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, terapeutas e médicos, que acompanham o processo de transição.
A fila de espera para o atendimento só aumenta. Em 2015, 30 crianças e adolescentes aguardavam acompanhamento. Em 2021, esse número saltou para 180.
O serviço, de acordo com Rafael, foi essencial para que ele não apenas compreendesse a realidade do filho de uma maneira mais profunda, mas para que ele também compreendesse a sua própria realidade.
Mães Pela Diversidade
Vivendo a transição lado a lado com o filho, Rafael afirma que ele e Gustavo têm se fortalecido e ressalta a importância das redes de apoio. Além do contato com a Casa Chama, os dois fazem parte do Mães Pela Diversidade, grupo formado por majoritariamente mães e pais de pessoas LGBTQIA+.
De acordo com Maria Júlia Giorgi, presidente do Mães Pela Diversidade, a história do coletivo começou há 20 anos. "A gente se encontrou ali no final do Orkut, começo do Facebook, e as nossas indignações e anseios eram as mesmas. Alguns vinham pela necessidade de trabalhar o próprio preconceito, outros pelo receio do preconceito que vem de fora. No fim, as trocas permitem que estejamos todos no mesmo barco, lutando pelos direitos dos nossos filhos."
Após todos esses anos de história, o Mães Pela Diversidade conta com cerca de 2.000 participantes e está presente em 14 estados do país. Além das mães, pais, avós, irmãos e irmãs complementam a força do coletivo. A escolha por manter o nome, mesmo contando com o apoio de outros parentes, de acordo com Maria Júlia, tem a ver com a força da palavra 'mãe', que "pode sim incluir a luta de outros membros da família".
Na opinião de Rafael, pai de Gustavo, fazer parte do coletivo tem sido importante, porque para além do apoio, é necessário mostrar a existência de crianças trans.
"É importante mostrarmos, porque as pessoas não querem aceitar que crianças trans existem. Eles dizem que a pessoa só transiciona depois de adulto, mas, no meu caso, eu tive inúmeros motivos para não conseguir me assumir nem enquanto uma pessoa lésbica, porque vim de uma família homofóbica", declarou Rafael.
"Eu não tinha coragem de falar. Então, depois que viemos para São Paulo, fui entendendo que havia a possibilidade de poder ser eu, mesmo que o preço fosse não estar mais próximo da minha família. Então, hoje, o Mães pela Diversidade é um apoio muito grande porque a gente se acolhe. Temos os nossos problemas, mas a gente sempre tem um ao outro pra se escutar e para se entender", finalizou.
Eduardo e Vanessa
Assim como Gustavo e Rafael, Eduardo e sua mãe Vanessa, também fazem parte do Mães Pela Diversidade. A história de transição de Eduardo, hoje com 15 anos, iniciou no final de 2019, com sua mãe entrando no quarto e já o chamando pelo nome escolhido, após descobrir pelo Twitter que o filho não se identificava com o gênero de nascimento.
"Ele estava na cama lendo, trocamos algumas palavras e eu soltei um 'Não é, Eduardo?', aí ele me olhou com cara de assustado", contou Vanessa. "Na hora, pensei que fosse ser mandado embora de casa, mas foi um momento feliz e muito acolhedor", complementou Eduardo.
Assim como Gustavo, desde que Eduardo iniciou sua transição, suas maiores dificuldades tiveram como cenário a escola, ambiente que, na opinião de Vanessa, "deveria ser o lugar onde as crianças e suas individualidades encontram respeito".
"Ele estudava em uma escola e precisou sair por causa da transfobia de um diretor", lamentou Vanessa. "Esse movimento está acontecendo. Além do Eduardo, existem outras crianças e adolescentes passando pela transição. O que eu sinto é que não existe o interesse pelo entendimento, mas essas crianças e adolescentes precisam do acolhimento", opina.
Falando sobre esse tema, Eduardo relembrou um dos momentos em que sofreu transfobia por parte de uma professora. "Ela estava falando sobre menstruação e eu fiz uma contribuição, falando que meninos também menstruam. Aí ela me levou para fora da sala, me pressionou contra a parede e me disse coisas absurdas. Me senti totalmente exposto", compartilhou Eduardo.
Na luta contra os esteriótipos de gênero
Apesar de ter transicionado, o menino de 15 anos continua usando roupas atribuídas ao esteriótipo de gênero feminino e, na opinião dele, "pessoas precisam parar de associar roupas à gênero".
"Uma vez me disseram que a sociedade sempre iria me ver como mulher, porque essa é a imagem que eu apresento pelo fato de eu usar roupas femininas ou até maquiagem, mas eu não acho que isso seja motivo para você tratar a pessoa da forma que quer. Às vezes, ela se expressa de uma forma extravagante, porque gosta de ser assim, e você precisa ser compreensivo, porque ninguém pede aceitação, apenas o respeito já basta", diz.
Segundo Vanessa, a transição de Gustavo é um reflexo de "força de coragem", o que acaba fortalecendo suas lutas pessoais. "Ele me dá mais força para assumir minhas lutas. Além do Mães Pela Diversidade, estou em outro movimento que é contra o racismo. Em todos os encontros, eu envolvo ele e ele me envolve, assim vamos aprendendo um com o outro. Isso só reforça nosso elo", comenta Vanessa.
"Eu não consigo entender o pai ou a mãe que diz que faz tudo pelo filho, mas no momento dessas situações, que eles dizem ser problema, eles optam pelo abandono. O mundo por si só já é muito cruel. Por que não proporcionar um espaço de carinho e segurança e, ainda por cima, fortalecer a relação com nossos filhos?", questiona.