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"Queremos atravessar o muro que construíram para gente", dizem funkeiras trans

Dupla Irmãs de Pau --conhecida como travestis do funk- falou ao Terra sobre conquistas e oportunidades para corpos dissidentes

18 jun 2023 - 05h00
(atualizado em 19/6/2023 às 10h19)
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No centro do palco da Casa Natura Musical, na Zona Oeste de São Paulo, Isma e Vita inicia o show das Irmãs de Pau com uma música gospel. Usando túnicas brancas, óculos 'juliet', e acompanhadas de um coral de seis pessoas, o espaço é tomado pela travestilidade de modo subversivo, através das vivências e vozes de duas artistas pretas, periféricas e travestis. 

"Sete da manhã já saio de casa e todos me veem. No busão, gritam aquilo que tento esquecer. Me apontam o que um dia não queria ter. Me dizem o que sou sem antes mesmo de me apresentar. Choro calada. Choros trancestrais entalados na garganta do tempo", canta de mãos dadas a dupla no início do show. 

'Irmãs de Pau' durante apresentação da música 'Kulto'
'Irmãs de Pau' durante apresentação da música 'Kulto'
Foto: Reprodução/Instagram

Proporcionando um contraste de sensações, ao fim da música Kulto, as túnicas são abaixadas e substituídas por vestidos acima do quadril e, simultaneamente, o gospel é substituído pelo funk. Nesse momento, Vita e Isma viram-se de costas e, quando retornam, assumem a figura do palhaço - de acordo com a dupla, uma forma de referenciar a quebrada. 

Com as máscaras 'clown', a dupla se apresenta ao público a partir de um trecho de Shambaralai, hit que já alcançou mais de meio milhão de visualizações desde o lançamento, no final de 2022. "Oi, meus amores, eu sou a Isma. Sou versátil e tenho 17 centímetros. Salve vida, eu sou a Vita, 19 centímetros, passiva e com local", diz a dupla, dando início à sequência de músicas como Medley do Submundo, Travequeiro e Dotadas.

Pela primeira vez experienciando e proporcionando uma apresentação diferente do formato pocket show, com a possibilidade de elaboração em vários níveis estéticos, como vestimentas, cabelos e iluminação, a dupla afirma que a apresentação na casa de shows, localizada em área considerada nobre de São Paulo, representou um marco para a carreira.

"A grande maioria dos lugares contratam um pocket show, que é mais comercial, e a Casa Natura contratou o show completo e foi muito legal poder explorar todos os nossos sentidos. Tudo o que já quisemos 'vomitar' dentro da música; o lado gospel, o lado do palhaço, a dança. Isso, do gospel, tocando em um lugar sentimental e espiritual travesti, também é muito dançante para a alma", afirmou Vita.

Entre um hit e outro e muito 'vogue', o marco se tornou evidente: apontando para os camarotes da Casa Natura Musical, que ficam localizados em uma área acima da pista, a dupla relembrou dificuldades da trajetória e revelou: "Gente, nossa família está bem ali. Hoje é um dia muito especial para a gente, nossa primeira vez nos apresentando na Casa Natura e tê-los aqui é muito importante", declararam. 

O início da dupla

Nascidas em São Paulo, Vita Pereira, 26, e Isma Almeida, 25, se conheceram durante o ensino médio e desenvolveram a amizade participando do movimento das ocupações estudantis, que aconteceu em 2015, contra as reformas educacionais que o governo de Geraldo Alckmin proporcionava. Na época, a dupla fazia parte do mesmo coletivo LGBTQIA+.

"Nós éramos da mesma escola e nossa amizade aconteceu quando ficamos confinadas juntas por causa das ocupações, acompanhando o coletivo LGBT+. A gente estava se conhecendo e transicionando ao mesmo tempo, o que fortificou muito nossa relação", disse Isma. 

Após as ocupações, as cantoras se envolveram com diversos formatos artísticos, como o teatro, o cinema e as produções culturais. A relação com a música sempre existiu, mas de uma forma diferente, já que ambas atuavam como DJ. Isma na festa Baile da Cuceta, criada por ela em Belo Horizonte, e Vita na festa Travada, organizada por ela em Araraquara. 

"Nós estávamos sempre experimentando, colocando nosso corpo em experimentação e principalmente o nosso gênero", afirmou Vita. Foi na pandemia, no entanto, que nasceu as Irmãs de Pau. 

"Nós nunca tínhamos cantado e feito um trabalho como dupla e acho que encontramos o momento ideal. Estava tudo caótico, depressivo, ansioso, então foi um momento de inventar possibilidades para conseguirmos atravessar esse momento. Foi tipo um pacto de vida, de falar assim: 'vamos seguir, experimentar esse babado e se arriscar'. Acho que foi, principalmente, sobre se arriscar", afirmou Vita.

Em meio ao período de isolamento social, a dupla lançou, em 2021, o álbum Dotadas, que chegou aos principais serviços de streaming do Brasil. A música Travequeiro, que conversa com a figura do homem cisgênero que hipersexualiza corpos travestis, se tornou a mais ouvida do álbum. 

“Foi o momento de usar uma figura que sempre nos hipersexualiza e jogar com essa identidade. Para além disso, um momento de falarmos sobre nós. Tipo: tá, dotadas, mas dotadas de talento, dotadas de coragem, somos dotadas de muitas outras coisas que vocês não viram que somos, mas somos.”

Frame do clipe 'Shambaralai'
Frame do clipe 'Shambaralai'
Foto: Reprodução/Instagram

Depois do lançamento de “Dotadas”, as Irmãs lançaram “Shambaralai”, principal hit da dupla. Repleto de beats e viradas inspiradas na música eletrônica, no rap, no funk e no trap, o single ganhou clipe e mostra as Irmãs conquistando o poder sobre um desmanche de carros abandonados, invertendo a lógica de liderança daquele ambiente, geralmente frequentado por homens cis e héteros. 

'Travestis da CPTM' e 'travestis do funk'

O hit impulsionou a carreira da dupla e, atualmente, chegar em eventos LGBTQIA+ é ter a certeza que, em algum momento, vamos ouvir um “Irmãs de Pau, chegou Irmãs de Pau, ela tem pau e a outra também tem pau". Questionadas sobre esse momento da carreira, Isma e Vita falaram sobre a realidade periférica e afirmaram que existe "muito tesão, felicidade e gratidão" envolvida. 

"Eu estava reparando esses dias e já viajamos para tantos lugares que perdi a conta. Fora que começamos a viajar de avião. Isso, na nossa realidade periférica, é extremamente valioso. Frequentar um hotel com piscina, uma praia, essas coisas são muito valiosas. É uma fase de muito agradecimento", afirmou Isma. 

Nesse ponto, Vita falou sobre a relação com o público e a sensação de ser reconhecida nos espaços públicos. "Lembro quando percebi, pela primeira vez, as pessoas de fato cantando as nossas músicas e nos gravando. A gente compõe e quando vê, está na boca do povo, nos stories. É muito louco, porque também somos fãs de muita gente", declarou.

Falando sobre esse reconhecimento, a artista de 26 anos relembrou a época antes das Irmãs de Pau. "Hoje em dia, quando estamos no metrô, algo que agora nem é tão comum, nós somos reconhecidas. E é um lugar que a gente cita muito nas nossas músicas, afinal, a estação de trem, o metrô, conversa muito com a realidade travesti, que no nosso caso, começou nesse trânsito de mobilidade social. A gente era as 'travestis da CPTM'. Era lá que a gente se arrumava para os 'rolês'", compartilhou Vita.

Conhecidas atualmente como as 'travestis do funk', a dupla é questionada se existe a ciência sobre esse reconhecimento. Ao afirmarem que sim, e dizerem que se sentem honradas, Isma e Vita também revelaram que existe muita autocobrança por trás disso. 

"Existe muito agradecimento, mas muita autocobrança e insegurança sobre o que vamos fazer para alimentar essa história. Mas isso é algo pequeno diante das boas sensações. Fora que estamos continuando sendo muito fiéis a nós mesmas, ao que a gente vive e ao nosso processo e essa é a chave para continuarmos produzindo de forma sincera", afirmou Isma. 

Apesar do reconhecimento, ser colocada em um pedestal, na opinião de Vita, está longe de ser algo positivo. "A gente se recusa a estar nesse lugar. Todo mundo erra, tem suas opressões e questões. Quando você coloca as pessoas em um pedestal, você as desumaniza", opinou a artista.

Para a construção desse trabalho, que além de musical, é performático, Vita e Isma afirmam possuir diversas referências, mas ao serem questionadas sobre essas referências, a dupla disse preferir falar sobre as maiores delas: "nós mesmas". 

"Nós nunca soltamos nossas mãos. E nem é sobre soltar a mão, porque essa frase já está bem ‘uó’, mas nós nunca nos abandonamos. Eu nunca me abandonei e a Isma nunca se abandonou. Acho que se a gente não se exalta, quem vai fazer isso, nesse mundo tão violento?”, questionou Vita. “Agora, muita gente está vendo potência em nós, mas e quando não tínhamos dinheiro para colocar uma lace, uma trança e éramos as mais feias do bonde? Quem estava nos apoiando? Nós mesmas."

Novidades a caminho

Recentemente, as Irmãs de Pau deram início a gravação de um novo álbum. Em clima de suspense, a única revelação feita, até o momento, é a participação de MC Luanna em uma das faixas do novo trabalho. O single, de acordo com elas, não é um funk e nem um vogue e se diferencia de tudo que já foi feito até o momento. 

Quanto à data de lançamento - e apesar das conquistas recentes - a dupla, que atualmente realiza o trabalho de forma independente, comentou a dificuldade em relação às oportunidades dadas pelo mercado a corpos dissidentes. 

"A gente sente que estamos no momento ideal para lançar um novo álbum. Estamos com a faca e o queijo na mão, porque Shambaralay está em alta, Medley do Submundo está em alta, mas ainda assim não estamos rendendo o suficiente para produzirmos tranquilamente e sem danos psicológicos", declarou Isma, que revelou que a dupla precisou utilizar todo o cachê para a produção do show na Casa Natura Musical. 

"Para conseguirmos fazer aquela estrutura, a gente precisou investir todo o dinheiro do cachê. Infelizmente, não podemos fazer isso em todos os shows. Afinal, precisamos comer, pagar nossas contas, e esse não é só um reflexo de um trabalho recente, mas de uma lógica de mercado", afirmou Isma.

Segundo Vita, existe muita negociação para colocar as Irmãs de Pau em ação, mas ao mesmo tempo, há muito desejo de ir além.

"Na maioria dos shows, sentimos que não ganhamos o quanto deveríamos. Eu vejo que o mercado ele desenha um caminho, principalmente quando se trata de pessoas trans, travestis, periféricas. É um caminho que vai até certo ponto, mas o que acontece é que, a partir de agora, a gente não quer só esse lugar, queremos atravessar o muro que construíram para a gente", finalizou Vita.

Fonte: Redação Terra
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