Somos NÓS: ‘Foi mais difícil me entender como assexual do que como trans’
Trans, não-binária e demissexual, Sara luta para provar que a luta assexual não precisa ser solitária e deve ser coletiva
Me chamo Sara Hanna, tenho 38 anos, sou trans, não-binária e demissexual. Sou designer gráfica e membro-fundadora do Coletivo Abrace, que se propõe a dar voz para o movimento assexual no Brasil. E você sabe o que ele significa? Vou falar aqui eu descobri e me entendi dentro dele.
Na universidade, quando tinha uns 25 anos, um amigo me disse ser assexual e fui atrás do termo para saber como tratá-lo, afinal, ele merecia respeito. Na época, não existia nada na internet em português que explicasse realmente como temos hoje. Tudo era focado na prática sexual, ou seja, que o assexual não sente atração sexual e não transa.
Então, para mim, nada mudou, porque eu perdi a virgindade aos treze anos. Eu cresci no centro de São Paulo e sempre tive muito contato com sexo, não só comigo, mas o assunto, sabe? Eu tinha colegas ali no centro que eram profissionais do sexo. Nada me tocou ali.
Até que aos 28, quatro anos depois, descobri a área cinza da assexualidade, que envolve pessoas demissexuais. Aí eu comecei a me pensar como uma pessoa do espectro assexual.
E foi uma coisa que, para mim, foi mais difícil do que me entender pansexual na adolescência ou uma pessoa não-binária depois aos trinta. Foi bem mais complicado porque isso permeou a minha vida toda e principalmente em um lugar de muito auto-abuso.
Eu havia permitido muitas coisas, que se eu soubesse que existia a assexualidade, talvez não tivessem acontecido, ou talvez não de uma forma que eu me sentisse tão mal de me colocar em certas situações.
E todo essa escala se multiplica ao colocar na mesa que também sou trans, afinal, no Brasil, o corpo trans é hipersexualizado, apesar de ser o país que mais mata pessoas trans no mundo. Esse lugar de fetiche sexual acontece com pessoas trans e também com pessoas assexuais.
Acho que vivemos em uma sociedade que tem uma construção do sexo um tanto abusiva. Então, você dizer que é assexual, para muitas pessoas, vira desafio. Tipo: “Ah é? Comigo você vai aprender a gostar de sexo!”, em um tom de ameaça.
Já aconteceu muito comigo, vezes em que não senti atração sexual pela pessoa e a pessoa forçava e falava “não, mas e se a gente tentar isso ou tentar aquilo, ou tentar de dessa forma…”, por várias vezes passei por isso.
Durante um período da minha vida, onde eu estava em um término de relacionamento, um antigo “companheiro” me estuprou pelo simples fato de estarmos terminando e ele achou que de alguma forma, deveria me marcar para me deixar com saudade. Daí você vê que o sexo pode ser usado muito como arma.
Por isso é importante ter em mente que a sexualidade não é sobre prática sexual e sim sobre atração sexual. É até romantizar o sexo achar que toda vez que se praticar sexo é porque se tem atração sexual. As pessoas transam por várias razões e por muitos motivos. Lembrando, óbvio, que estupro não é sexo, né?
A partir destas vivências foi fundado o Coletivo Abrace com a participação de amigos da mesma causa, um lugar em que a gente se identificasse, que a gente pudesse entrar e que existisse um ativismo de fato, né? Que fosse ir atrás de políticas públicas para pessoas assexuais e tudo mais. Coisa que não existia.
Não aguentávamos mais ouvir piadas do tipo "ah, é só transar". Não é sobre transar ou não, é sobre a gente viver numa sociedade permeada por sexo, onde o sexo é norma ao passo que a gente vive numa sociedade mega moralista.
E o que eu posso dizer para você que está passando por esse processo de descoberta da assexualidade?
Você tem que entender que está tudo certo. Acho que o principal é saber que você não é doente. Isso não é uma doença, não há nada a ser curado. Pode ser que algumas pessoas estejam aí tentando se entender e passem por tentativa de cura, que nunca vai existir.
Afinal, não há cura para o que não é doença, certo?