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Pedido para adotar mulher resgatada em regime de escravidão 'não zera o passado', reage procuradora

Ministério Público do Trabalho deve se opor ao requerimento de filiação afetiva de Sônia Maria de Jesus, anunciado pela família do desembargador Jorge Luiz de Borba

13 jun 2023 - 03h11
(atualizado às 08h40)
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"É mais uma tragédia causada pelo trabalho infantil que se estendeu no tempo". É assim que a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso descreve a vida da mulher surda e muda resgatada pela Polícia Federal da casa de um desembargador em Santa Catarina em condições análogas à escravidão.

Jorge Luiz de Borba é desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Jorge Luiz de Borba é desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Foto: Divulgação/TJSC / Estadão

A mulher, que acaba de completar 50 anos, é Sônia Maria de Jesus. Ela foi morar com a família quando ainda era criança - a idade exata é desconhecida, tinha entre 9 e 12 anos, - e passou uma vida tutelada. Nunca aprendeu a Língua Brasileira de Sinais e só tirou o primeiro CPF em 2021.

"Uma criança negra, em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica extrema, oriunda de uma família que não teve condições de mantê-la", acrescenta a procuradora.

O caso chegou ao conhecimento do Ministério Público do Trabalho no segundo semestre do ano passado, por meio de uma denúncia anônima, e ganhou repercussão por envolver uma autoridade em Santa Catarina, o desembargador Jorge Luiz de Borba, do Tribunal de Justiça do Estado.

Os Borba afirmam que a mulher era como um 'membro da família' e que seus propósitos eram 'humanitários'. Com a repercussão do caso, anunciaram que vão pedir para adotar 'Soninha', garantindo-lhe todos os direitos, inclusive patrimoniais.

"O fato de existir afeto, de existir uma relação no âmbito familiar, dentro de casa, da residência, não descaracteriza a exploração", rebate Lys.

Jorge Luiz de Borba é desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Jorge Luiz de Borba é desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Foto: Divulgação/TJSC / Estadão

O Ministério Público do Trabalho deve se opor ao pedido de filiação afetiva. "É necessário avaliar que tipo de medida vai ser adotada como uma possibilidade de fugir a esse reconhecimento (de trabalho análogo ao escravo). Nenhuma medida adotada agora tem condições de zerar o passado", acrescenta a procuradora.

A investigação aponta que Sônia dormia em uma parte separada da casa, destinada aos empregados, e não fazia as refeições com a família. Ela foi levada a um abrigo para vítimas de violência doméstica e está recebendo acompanhamento de profissionais. Também começou a aprender Libras.

"Ela hoje deu um sorriso que conquistou a todos. Eu até recebi uma mensagem dizendo: 'ela deu uma gargalhada aqui e está fazendo amizade'. É isso que tem sido levado em consideração. Já que ela não pode falar se está feliz ou triste, as reações, as outras formas de comunicação, precisam ser todas consideradas", resume a procuradora.

Leia a entrevista completa:

ESTADÃO: Qual o principal desafio no caso?

Lys Sobral Cardoso: Há desafios dos dois lados. Do ponto de vista dela, a comunicação é um desafio gigantesco. Para se falar realmente em resgate, é preciso uma inclusão econômica e social. O fato de ela não ter a capacidade se comunicar no nosso padrão é um desafio extremo e reforça a caracterização do trabalho ao análogo ao escravo, porque isso aumenta o grau de vulnerabilidade dela. Agora, no pós-resgate, é um desafio a mais porque a comunicação é central para que ela possa seguir uma outra vida. Além do fato de envolver uma grande autoridade no Estado de Santa Catarina.

ESTADÃO: Ela tem a percepção de que foi explorada?

Lys Sobral Cardoso: É difícil até avaliar isso. É um caso que demanda um cuidado especial. Nós estamos acompanhando de perto para entender o que está acontecendo com ela. A equipe da casa de acolhimento já disse que ela está bem. O relato é que ela está manifestando vontade de fazer amizades. Ela hoje deu um sorriso que conquistou a todos. Eu até recebi uma mensagem dizendo: 'ela deu uma gargalhada aqui e está fazendo amizade'. É isso que tem sido levado em consideração. Já que ela não pode falar se está feliz ou triste, as reações, as outras formas de comunicação, precisam ser todas consideradas.

Além disso, uma relação de violência doméstica inserida no ambiente laboral implica certo grau de abuso físico ou psicológico - nesse caso, sob o argumento de que ela sempre foi da família. Mas alguns direitos básicos não foram garantidos. Ela viveu 40 anos com essa perspectiva. Não é fácil. Tudo isso precisa ser considerado.

ESTADÃO: O argumento de que a pessoa explorada faz parte da família é comum em casos semelhantes? Isso torna mais difícil o trabalho do MPT?

Lys Sobral Cardoso: É comum. Fica mais difícil, sem dúvida. Quando a gente analisa as relações como um todo, enquanto sistema de Justiça mesmo, alguns instrumentos de convencimento são mais difíceis de serem desconstruídos. A violência física é ostensiva, então ela é mais facilmente combatida nesse sentido do que a violência psicológica, um abuso, coação, engano, fraude. É mais visível de enxergar e de combater.

A gente se debruçou sobre a Lei Maria da Penha, porque ela traz uma pista importante para descortinar essas relações, para que a gente compreenda melhor que o fato de existir afeto, de existir uma relação no âmbito familiar, dentro de casa, da residência, não descaracteriza a exploração que aconteceu.

ESTADÃO: É nessa linha que o MP vai argumentar se der entrada em uma ação contra a família?

Lys Sobral Cardoso: O próprio legislador já tinha entendido isso: o alcance de uma relação de afeto e, dentro dela, haver exploração. A alegação de que existe afeto, de que eles entendiam ela como sendo na família, não exclui o fato de que ela trabalhava e recebia uma tratamento diferenciado dos filhos do casal. Isso é fato incontestável. Ela não dormia no mesmo local, ela dormia em uma parte separada da casa, destinada aos empregados. Ela não fazia as refeições com a família. A relação era diferente.

Eles tiveram outros funcionários ao longo do tempo, alguns foram registrados, tiveram vínculo empregatício. Ela não teve. Então ela ficou no meio: dizem que ela fazia parte da família, mas não era tratada como se fosse, mas também não era reconhecida como empregada.

ESTADÃO: Ela não tem nenhum familiar?

Lys Sobral Cardoso: Não identificado. Ela chegou para a companhia da família (Borba) criança. É mais uma tragédia causada por trabalho infantil que se estendeu no tempo.

ESTADÃO: Com quantos anos ela passou a morar com a família?

Lys Sobral Cardoso: A idade exata de quando ela chegou na família é desconhecida. Entre 9 e 12 anos. E ela acabou de completar 50 anos. Uma criança negra, em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica extrema, oriunda de uma família que não teve condições de mantê-la.

ESTADÃO: Ela tem documentos?

Lys Sobral Cardoso: O primeiro CPF dela foi registrado em 2021.

ESTADÃO: Ela ficará na casa de acolhimento por tempo indeterminado?

Lys Sobral Cardoso: As casas de acolhimento a vítimas de violência doméstica já têm essa perspectiva de o acolhimento se prolongar no tempo, apesar de a lei falar em um prazo de 30 dias, prorrogável. Quem acolhe, sabe que muitas vezes isso se estende no tempo. Para nós, enquanto sistema de Justiça, é necessário avaliar o melhor para ela: se ela tem condição de viver sozinha em determinado momento ou, se não tem, com quem ela vai ficar, quem vai acolhê-la, em que condições. Tudo isso é monitorado.

ESTADÃO: Quais são os próximos passos?

Lys Sobral Cardoso: O inquérito segue para ser instruído mesmo. Há testemunhas para serem ouvidas. As próximas medidas são um termo de ajustamento de conduta ou uma ação judicial. Uma não exclui a outra. Nós estamos avaliando. Isso do ponto de vista trabalhista. As responsabilidades criminais ficam a cargo do Ministério Público Federal.

ESTADÃO: O MPT pode se opor ao pedido de filiação afetiva anunciado pela família do desembargador?

Lys Sobral Cardoso: É da nossa alçada porque, uma vez que a gente reconhece uma situação de escravidão moderna, de trabalho análogo ao escravo, é necessário avaliar que tipo de medida vai ser adotada como uma possibilidade de fugir a esse reconhecimento. Nenhuma medida adotada agora tem condições de zerar o passado. Isso é impossível. O que pode ser feito para justificar tudo o que aconteceu? Nada. Não tem como.

ESTADÃO: Há prazo para o MPT concluir as investigações?

Lys Sobral Cardoso: Prazo legal não. Mas tem o prazo das circunstâncias - tanto o que a gente consegue obter de provas quanto a necessidade de se promover as medidas necessárias, indenização, condenação judicial...

ESTADÃO: Ela começou a aprender a Língua Brasileira de Sinais na casa de acolhimento?

Lys Sobral Cardoso: Hoje (12/06) foi o primeiro contato. A reação foi muito boa.

Estadão
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