Personalidades negras empurraram a luta antirracista em 2023
Ano foi um marco histórico na representatividade e na celebração à negritude, mas questões complexas não podem ser esquecidas
As estreias da 23ª edição do BBB e de "Vai na Fé", logo no início do ano, de cara avisaram que 2023 seria diferente: mais diverso, mais representativo e muito, muito mais preto. Com um elenco majoritariamente formado por pessoas negras, o reality show aqueceu o debate sobre pautas importantes e até então subestimadas, como o racismo contra religiões de matriz africana sofrido e denunciado por Fred Nicácio. Quem levou o prêmio de R$ 2,88 milhões de reais foi uma mulher branca, mas Fred, Domitila, Alface e Aline Wirley, entre outros, fizeram história.
Já "Vai na Fé" seguiu a cartilha das telenovelas clássicas ao contar a história de um casal apaixonado separado por um vilão cruel - e fez o Brasil torcer pelo reencontro dos dois. A diferença é que o par romântico foi formado por Sheron Menezzes e Samuel de Assis, artistas negros, algo impensável há algumas décadas. E o vilão Theo, interpretado por Emilio Dantas, causou indignação por suas falas racistas.
Inspirada levemente na trajetória da rapper evangélica Negra Li, que cantou a música de abertura, "Vai na Fé" ainda escancarou para o público o preconceito sofrido diariamente por jovens pretos. Em uma cena sensível que acompanhava uma roda de conversa na Universidade, o estudante Yuri (Jean Paulo Campos) afirmou que se sentiu preto pela primeira vez quando foi preso sem ter feito nada.
BBB23 e "Vai na Fé" são dois exemplos, entre tantos, da tão batalhada representatividade negra na TV. Em um certo momento, todas as novelas da grade da Rede Globo trouxeram atores negros como protagonistas - nenhum deles papéis "típicos" e ultrapassados de colaboradores domésticos ou pessoas escravizadas.
Se a TV brasileira é considerada um reflexo do país, vivemos, sim, um período de avanço. "O negro está na moda", definiu a atriz Zezé Motta. "Nunca na história teve tanto protagonismo preto na televisão", comemorou Paulo Vieira ao receber o troféu Paulo Gustavo no quadro Melhores do Ano no "Domingão do Huck".
Racismo às claras
Num cenário em que 8 em cada 10 brasileiros acredita que o Brasil é um país racista, também é uma evolução constatar que os negros estão presentes em mais da metade das campanhas publicitárias digitais dos 20 maiores anunciantes. Os dados são da pesquisa anual “Diversidade na Comunicação de Marcas em Redes Sociais", que a consultoria Elife, a plataforma Buzzmonitor e a agência SA365 realizam desde 2018.
Além de televisionada, a revolução vem sendo filmada por celulares, registrada por câmeras de condomínios e compartilhada nas redes sociais. O racismo ainda persiste, mas que ele, então, seja exposto e devidamente punido. Um exemplo emblemático foi o da ex-jogadora de vôlei Sandra Mathias Correia de Sá, indiciada por lesão corporal, injúria e perseguição após ser flagrada chicoteando um entregador de aplicativo negro em abril deste ano.
A luta antirracista é encampada por celebridades como Cacau Protásio, que ganhou direito a uma indenização de R$ 30 mil reais após ação contra o Estado do Rio de Janeiro por racismo. O processo, que julga um episódio ocorrido em 2019, ainda segue tramitando.
Outro caso icônico foi o de Vini Jr., jogador brasileiro que atua como atacante no Real Madrid. Além de encabeçar uma campanha contra o racismo no Mês da Consciência Negra, o esportista ainda faz questão de explanar nas redes sociais os ataques que sofre no futebol espanhol, recebendo o apoio de celebridades.
Mudanças políticas
É na esfera política que estão os principais motivos para comemorar. Após uma gestão presidencial que flertava abertamente com o racismo, além de não esconder o desprezo às minorias, o governo atual tem um número recorde de ministros negros.
Os destaques são a cantora Margareth Menezes, na pasta da Cultura, Anielle Franco, à frente do Ministério da Igualdade Racial, e Silvio Almeida, no comando dos Direitos Humanos. Vale lembrar que o Ministério da Cultura havia sido erradicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e que as duas outras pautas foram criadas por Lula.
"No meu ponto de vista, passou-se a pautar no Brasil a discussão da questão racial no que diz respeito às instituições governamentais e isso contribuiu para essa mudança, para esse marco que ocorreu em 2023. A presença de Anielle Franco tem um grande simbolismo por ser irmã de Marielle Franco, uma vereadora negra que foi assassinada anos atrás", comenta Ramatis Jacino, docente do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do ABC (UFABC).
"Aconteceu um movimento de fortalecimento das políticas públicas para o combate do racismo. E não só isso, 2023 foi o ano que marcou os 20 anos da Lei 10.639, que fala sobre o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, e também houve uma avaliação da lei de cotas nas universidades", endossa Delton Aparecido Felipe, professor, pesquisador, ativista social e secretário-executivo da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
Outro acontecimento simbólico foi o fato de Santa Catarina voltar a ter uma deputada negra 89 anos após Antonieta de Barros, que também foi a primeira parlamentar negra do país. Vanessa da Rosa, primeira suplente do PT, ocupou o cargo durante um mês, durante licença do deputado Padre Pedro (PT).
Luta contínua
Para a professora Ivani Melo, coordenadora do Núcleo de Estudos Yabás da Uneafro Brasil, embora 2023 tenha, de fato, sido um marco capitaneado por um governo progressista, é preciso observar o todo com cautela - e não perder o futuro de vista.
Ela reforça que as reivindicações do movimento sempre existiram, em relação à representatividade e ao protagonismo negro. "Somamos mais da metade da população brasileira e nada mais justo que estejamos em todos os espaços e em posições relevantes de transformação social", diz.
E completa: "É importante perceber a ebulição do tema e comemorar os avanços conquistados e o protagonismo merecido das personalidades negras, mas que nossa atenção não se perca em acreditar que somente discursos ou publicidade farão com que o racismo seja eliminado da nossa cultura. Ainda há um caminho a percorrer, já que questões complexas como a estrutura social e racial brasileira demandam estudos e práticas antirracistas", observa.
Para 2024, Delton aponta como um dos desafios a aprovação de uma nova lei de cotas nos concursos públicos. "O combate ao racismo também se dá pela presença de um maior número de juízes negros, de promotores negros, de funcionários públicos negros, de médicos negros. É fundamental, inclusive, para a gente redimensionar os lugares ocupados no Brasil", opina.
A questão do racismo religioso teve destaque na mídia em 2023, segundo o ativista da ABPN. Mas precisa continuar aquecida em 2024, sobretudo por causa das notícias envolvendo ataques e até assassinatos a membros como Mãe Bernadete, líder quilombola morta a tiros na Bahia em agosto.
Já Liliane Rocha, fundadora e CEO da Gestão Kairós – Consultoria de Sustentabilidade e Diversidade, destaca que a realidade do mundo corporativo ainda precisa abrir espaço para profissionais negros - e alçá-los a cargos de liderança. "Há uma subrepresentatividade nos postos de tomada de decisão nas grandes empresas, postos que ditam a sua vivência em sociedade no dia a dia", lamenta.
Ramatis, da UFABC, resume bem a percepção acerca 2023 e as expectativas para o futuro: "Ficamos felizes e aplaudimos que hoje nós temos negros em destaque nos espaços da mídia, na publicidade, nos espaços acadêmicos, nos espaços políticos. Isso é muito positivo. Contudo, a grande maioria da população negra ainda vive em condições de miserabilidade, com desemprego e violência policial sistêmica, principalmente contra a população jovem negra. Combater esse racismo estrutural e sistêmico que afeta o acesso à saúde e à educação e leva à morte e à exclusão deve ser prioridade, na minha compreensão."