Pode a matemática ser um agente de combate ao preconceito e à discriminação?
É necessário pensar em estratégias que garantam o acesso e a permanência de todos dissidentes em todos os ambientes da sociedade
A emergência da presença, em espaços de poder, de corpos que dissidem das normas sociais historicamente impostas pelo patriarcado e pela cis-heteronorma é notável, tendo em vista as transformações sociais desencadeadas, sobretudo, pelo avançar das lutas travadas por minorias sociais que não aceitam mais terem suas existências cerceadas por esses dispositivos de segregação. Isso comprova a necessidade de pensarmos em estratégias que garantam o acesso e a permanência desses corpos em todos os ambientes da sociedade.
Desta forma, e muito que urgentemente, precisamos refletir sobre a presença da população LGBTI+, pessoas com deficiência, negras, indígenas, quilombolas e tantos outros corpos em ambientes educacionais, pois são nestes que o desenvolver de toda a trajetória de formação cidadã se inicia. São nestes lugares que podemos garantir que o mínimo de protagonismo e desenvolvimento social possam de fato existir. Não podemos pensar em seguir avançando com políticas públicas que promovam a equidade social e garantam direitos mínimos, sem a participação de todas as pessoas.
Mas como fazer valer a presença e a plenitude da existência dessas pessoas dentro desses ambientes, fazendo com que de fato se sintam pertencentes a eles? Quais seriam as estratégias necessárias para que LGBTI+ permaneçam nesses espaços com respeito às suas identidades e/ou orientações? É pensando nas respostas para essas perguntas e tantas outras que a cada dia mais surgem iniciativas que promovem a cidadania e a equidade em salas de aula Brasil a fora, sobretudo possibilidades que adentram o universo curricular e que se apresentam como uma oportunidade de promoção de cidadania e justiça social.
E é nesse contexto de redimensionamento do currículo e de potencialização de instrumentos nele contido que procuramos desconstruir paradigmas e movimentar saberes em favor da luta contra todas as formas de preconceito. Nesse contexto, e muito particularmente, citamos a matemática, que historicamente é tida como um componente curricular que se sobrepõe entre os outros, que coleciona títulos de exclusão e que reverbera a cis-heteronormatividade, trazendo quase sempre, dentro de todos os seus contextos, um perfil que é cis, hetero, masculino e branco. Mas como é possível tirar a matemática, uma ciência dita exata, de sua zona de conforto e de sua suposta neutralidade, rompendo a barreira da cis-heteronormatividade e tornando-a um instrumento de inclusão?
A priori, tentar procurar embasamento legal para construir caminhos para essas discussões não é nada fácil, mas é possível. Documentos orientadores, como é caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) trazem no seu escopo formas generalistas de se abordar as temáticas Gênero e Sexualidades, o que por vezes deixa lacunas e muitas dúvidas, mas são nessas "brechas" da legislação e com a ajuda de outros dispositivos mais direcionados, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN -1998) que conseguimos articular esses saberes à matemática.
Afunilando ainda mais a compreensão, podemos citar uma forma de articulação que garante o debate assertivo e correlaciona problemas sociais a assuntos da ementa curricular. Anualmente a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) produz um dossiê sobre o monitoramento das violências contra pessoas trans e travestis brasileiras. Esses dados são importantíssimos para a construção de políticas públicas que promovam a cidadania dessas pessoas. Quando olhamos para o documento, nos deparamos com aspectos matemáticos do início ao fim. São tabelas, gráficos, porcentagens, médias, todos acompanhados de um estudo sensível e qualificado, que leva a informação e condiciona reflexões.
Com todo esse material em mãos, com o "traquejo" pedagógico adequado para cada ano/série e articulando com a legislação educacional, podemos promover múltiplos diálogos utilizando a matemática como instrumento para transformação social e de combate à transfobia, visibilizando uma população que é segregada e marginalizada historicamente e que necessita de acolhimento e cidadania. Claro que tratar sobre um assunto tão delicado não é tão simples assim, porém precisamos debater essas violências sofridas cotidianamente, sobretudo dentro dos ambientes escolares, para que elas não se repitam e sejam erradicadas de vez. Esse é apenas um exemplo de abordagem pedagógica no qual a matemática pode ser utilizada como instrumento dialógico, dentre tantos outros.
Como um exemplo para podermos visualizar a matemática em uma outra perspectiva, diferente da que nos foi condicionada, temos o MatematiQueer. Um grupo de pesquisa e extensão que articula as questões de gênero e sexualidades em Educação Matemática, além de fomentar práticas pedagógicas antimachistas, antissexistas, antiLGBTIfóbicas nas aulas de matemática. Atualmente o grupo possui mais de 200 colaboradoras/ies/es espalhadas/es/os por todas as regiões do Brasil. Coordenado pelo professor Dr. Agnaldo Esquincalha e sediado na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, o grupo desenvolve várias ações de formação e aperfeiçoamento, que nos levam a conceber a matemática como uma aliada no combate de todas as formas de segregação, violência, preconceito e opressão.
Seguir avançando no combate a LGBTfobia, sobretudo no combate à transfobia, não é uma escolha, mas, sim, uma necessidade. Precisamos TRANSformar, cada vez mais, as escolas do nosso país em ambientes acolhedores e que promovam a cidadania de todas as pessoas, respeitando suas diferenças. Utilizar o currículo e os seus componentes é uma forma de agir urgente e cabe a cada um/a/e de nós professoras/es/ies, com a ajuda de toda a comunidade escolar, tornar isso possível.