Por que a maioria das pessoas com deficiência auditiva não usa Libras no Brasil?
Interpretação incorreta de dados, desconhecimento em torno da condição e desafios etários geram visão equivocada da língua de sinais
Hoje, dia 10 de novembro, celebra-se o Dia Nacional de Prevenção e Combate à Surdez. Embora tenha um viés ligado à saúde e à qualidade de vida, a data também serve para dar visibilidade à chamada comunidade surda e suas necessidades e particularidades e, ainda, abordar mitos que envolvem o tema. Um deles é o de associar a deficiência auditiva à uma espécie de "sinônimo" do uso de Libras, a Língua Brasileira de Sinais.
Embora seja considerada uma língua oficial no Brasil conforme a Lei 10.436/2002, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no país existem mais pessoas com deficiência auditiva oralizadas do que sinalizadas.
Surdos oralizados são aqueles que fazem leitura dos lábios e estudam o português para poderem falar, ler e escrever como ouvintes. Já os surdos sinalizados, muitas vezes erroneamente chamados de surdos-mudos, se comunicam usando Libras. Em tempo: a mudez é outra deficiência e não tem nada a ver com a surdez.
Do ponto de vista clínico e conforme definições da Organização Mundial de Saúde (OMS),
a principal diferença entre surdez e deficiência auditiva está na intensidade do problema auditivo. Deficiência auditiva significa a diminuição na capacidade de ouvir sons - através de um ou de ambos os ouvidos - da mesma maneira que outras pessoas.
Definições e generalizações
De acordo com a OMS, os indivíduos com perda auditiva que varia de leve a grave podem ser classificados como deficientes auditivos. Eles se comunicam, geralmente, pela linguagem falada e podem fazer uso de aparelhos auditivos e implantes cocleares.
A surdez é definida pela OMS como a “perda completa da capacidade de ouvir em uma ou ambas as orelhas”. Geralmente, um indivíduo surdo têm perda auditiva profunda e costuma usar a língua de sinais para se comunicar - mas isso não é regra.
É válido saber que, culturalmente, ser surdo ou ter deficiência auditiva não está relacionado com o quanto você consegue ouvir, e, sim, com a maneira como você se reconhece. Por isso muitas pessoas se dizem pertencentes à chamada "comunidade surda".
Os dados quantitativos atualizados sobre as pessoas surdas e/ou com deficiência auditiva no Brasil - e sobre a população com deficiência geral no país - só serão anunciados em 2024 pelo IBGE. No entanto, levantamentos divulgados anteriormente ajudam a comprovar que a maioria das pessoas surdas e/ou com deficiência auditiva não usa Libras no Brasil.
Conforme o Censo 2010 do IBGE, cerca de 9,7 milhões de brasileiros declararam ter deficiência auditiva (cerca de 5,1% da população). A deficiência auditiva severa foi declarada por mais de 2,1 milhões de pessoas - destas, 344,2 mil são surdas e 1,7 milhão de pessoas têm grande dificuldade de ouvir. Nenhum desses números, porém, pode ser apontado como um contigente de pessoas que usam Libras.
A Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019, avaliou o conhecimento em Libras por pessoas com mais de 5 anos de idade, separando-as em três graus de perda auditiva: alguma dificuldade de ouvir, grande dificuldade de ouvir ou total incapacidade de ouvir. Segundo o levantamento, apenas 1,8 % das pessoas com alguma dificuldade de ouvir (perda leve a moderada) sabem falar a Língua Brasileira de Sinais. Quando o recorte da pesquisa considerou a população com mais de 5 anos com deficiência auditiva (aqueles que têm grande dificuldade de ouvir ou não conseguir ouvir de modo algum), descobriu-se que apenas 22,4% sabe usar Libras.
São informações importantes para não generalizar PcD auditivas e perceber que muita gente faz uso da fala, se comunica oralmente e buscam o apoio da leitura labial. Portanto, precisam de outros recursos de acessibilidade, como por exemplo as legendas.
Apagamento histórico
Para a palestrante e consultora Lak Lobato, 46 anos, criadora do site Desculpe, Não Ouvi!, existem outras questões por trás da impressão generalizada de que toda pessoa surda sabe ou deveria saber Libras. "Há uma série de motivos, entre eles o fato de que surdos oralizados por muito tempo camuflavam a condição. Como a deficiência era vista como um 'marcador social' de inferioridade, quem conseguia disfarçar a condição quase sempre o fazia para evitar a exclusão. Tanto que a gente quase não sabe de surdos adquiridos ao longo da História", afirma Lak, surda oralizada que desde 2009 é usuária de implante coclear.
Segundo ela, surdos que adotaram línguas de sinais não camuflavam a surdez - logo, tinham mais visibilidade. "Era sobre eles que se falava e é isso que a mídia mostra até hoje. Só recentemente começaram a dar espaço para se falar da surdez de forma diversa, especialmente quando os números começaram a mostrar essa realidade: há muita gente com perda auditiva, mas apenas uma parcela é de surdos que usam Libras", diz.
A palestrante ainda destaca que, quando os resultados do Censo 2010 foram apresentados, Libras foi muito divulgada como uma solução que atenderia quase 10 milhões de surdos. "Mas houve desconsideração de que nesses 10 milhões havia diversidade de perfis linguísticos, de maneira que não dá para oferecer uma solução única", opina.
Para a professora doutora Solange Rocha, diretora-geral do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Brasil há o costume de pensar que a língua de sinais "brota" no surdo. "Não. A criança surda precisa de meios para que essa língua seja elaborada e desenvolvida, assim como a língua portuguesa depende de outros meios para que desenvolva. Então é preciso que haja uma política linguística que garanta aos surdos escolas bilíngues", ressalta.
Aprender ou não Libras não é, muitas vezes, uma escolha feita pelo próprio indivíduo, conforme aponta Cecilia Moura, membro do Grupo de Trabalho do Comitê de Língua de Sinais e Bilinguismo para Surdos do Departamento de Linguagem da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa). "Pode ser uma escolha da família, que optou para que a criança não fosse exposta a Libras quando pequenininha. É importante observar que ninguém nasce sabendo Libras, da mesma maneira que nenhuma criança nasce falando Português ou a língua do seu país. É a relação com o outro que impulsiona o desenvolvimento da língua", justifica.
Idosos com limitações
Solange, do INES, ainda chama a atenção para as demandas da população idosa. "Geralmente, idosos com perda auditiva podem fazer uso de aparelhos de amplificação sonora e para isso é preciso estudar a natureza da perda auditiva. É uma questão clínica, comum em pessoas idosas, mas que não necessariamente determina a experiência de ser surdo. Pode ser que um idoso se interesse por aprender a língua brasileira de sinais, mas ele vai se comunicar com quem em casa? Língua é para comunicação. Isso é muito claro no momento em que nos propomos e nos manifestamos no sentido de garantir políticas públicas para a população surda", comenta.
Na opinião de Lak, qualquer pessoa pode se beneficiar do aprendizado da Libras. Porém, não adianta uma pessoa idosa se dispor a aprender, por exemplo, se os familiares não aprenderem também. "Só funcionaria se todas ou grande parte das pessoas com quem esse idoso convive também aprendesse. É importante entender que dizer 'aprenda Libras' de maneira isolada não resolve a comunicação de ninguém, ela teria que ser aprendida de forma coletiva. Além do mais, nem todas as pessoas que perdem a audição, especialmente idosas, têm vontade de aprender uma nova língua. Também não é tão simples substituir a comunicação oral que usaram a vida toda", pontua.
Por mais que a população idosa também possa ter alguma resistência com o uso de tecnologias auditivas, ainda é a preferência deles buscar um recurso que permita continuar se comunicando como sempre se comunicaram. É uma questão de identidade.