Povo indígena do Pantanal tenta salvar sua língua da extinção
Os guatós perderam seu território, se dispersaram e deixaram de falar seu idioma; descendentes incentivam jovens a revitalizar a língua com aulas em área recuperada meio século depois
ENVIADA ESPECIAL AO PANTANAL (MS) - Etnia secular da região do Pantanal, os guatós foram expulsos de seu território nos anos 40, se espalharam pelas periferias das cidades da região, deixaram de se comunicar no seu idioma e, desde que recuperaram suas áreas, em 1994, tentam revitalizar a língua esquecida.
Hoje falada com fluência por apenas um indígena idoso, o guató faz parte do currículo da escola da aldeia Uberaba, e se tornou uma das prioridades para a tribo que vive numa ilha, distante 330 km de Corumbá (MS), onde só é possível chegar com barcos de pequeno porte.
Com a dispersão, a etnia guató foi considerada extinta nos anos 50 pelo órgão indigenista da época. Após a constatação de que várias das famílias expulsas e seus descendentes seguiam nas cidades de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, voltou a ser reconhecida no final da década de 70.
Mas foi só em 1994 que os guatós recuperaram parte da área onde vivia a maior parcela do povo guató antes da expulsão, na ilha Ínsua, na divisa com a Bolívia. Começaram então a reconstruir suas vidas na aldeia Uberaba e a desenvolver pesquisas para revitalizar o idioma.
Vicente Manoel da Silva (ou Vicente Guató), de 82 anos, domina a língua de uma comunidade pantaneira que chegou a ser considerada extinta nos anos 1950
Uma das professoras é a guató Francisca Vasques Mendes, de 39 anos. Ela participa de um grupo de pesquisas junto com uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além de também ter feito gravações com conhecedores da língua, ela e outros profissionais participam de oficinas dadas pelos linguistas Kristina Balykoza e seu marido Gustavo Godoy, da UFRJ. Eles começaram a documentar o idioma em 2016.
O casal esteve várias vezes com Vicente e Eufrásia. Com eles, conseguiu vasto material com palavras, frases, histórias e pronúncias do guató, que usa para estudar a gramática do idioma e subsidiar os professores. Os dois também publicaram artigos e cartilhas sobre o tema.
Os próximos projetos do casal para este ano são a edição de um livro com histórias contadas por Vicente e o lançamento de um dicionário guató, que já tem cerca de 600 palavras, muitas delas publicadas na internet. No momento eles vivem nos Estados Unidos, onde ele faz estágio pós doutoral e ela, doutorado em línguas indígenas.
"A língua guató nunca morreu 100% e atualmente há várias pessoas na ilha que estão aprendendo", afirma Godoy. "Não serão falantes nativos, porque não aprenderam do berço, mas estão em busca de se tornarem neofalantes (ter o guató como segunda língua)."
Pesquisas e gravações
Francisca conta que seus avós e seus pais e outras quatro famílias foram as únicas a permaneceram na ilha Ínsua quando houve a diáspora. Ela e os 11 irmãos nasceram no local. "Meus pais já não falavam guató", diz.
Ela teve aulas com o primeiro professor da hoje Escola Estadual Indígena João Quirino de Carvalho e aprendeu palavras e expressões. Se aprofundou no tema quando cursou magistério como cotista na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, assim como nas conversas com Eufrásia e, depois, com ajuda dos linguistas.
A professora começou a lecionar na escola local há 13 anos, primeiro dando aulas de português e, depois, de guató. "Eu aprendi com pesquisas e com gravações de dona Eufrásia e 'seu' Vicente, mas é complicado, pois preciso ouvir as gravações, entender a pronúncia e adaptar para a gramática atual", diz.
Um dos desafios que Francisca enfrenta é introduzir a formação de frases nas aulas que dá aos 52 alunos. "A palavra muda quando é usada para formar a frase e usa-se muito as letras k, tx e dj", explica, enquanto mostra alguns exemplos em uma lousa. Ela tem quatro filhos e a caçula Hendlly, de seis anos, está aprendendo guató com a mãe.
Dicionário
Casada com Severo Ferreira, primeiro cacique da Aldeia Uberaba e que ficou no posto de 1994 a 2016, Dalva Maria de Souza Ferreira se tornou "uma guató de coração".
Durante o incêndio ocorrido em 2020, faltou infraestrutura para socorro aos animais, que tinham de ser levados a Campo Grande, a 420 km de distância.
Ferreira e Dalva contam que, assim que os guatós começaram a se reagrupar, no fim dos anos 70,, foi iniciada a luta pelo reconhecimento oficial do povo guató e pela recuperação do território da ilha Ínsua.
A área antes ocupada por fazendeiros foi depois reivindicada pelo governo federal e passou para as mãos do Exército, que lá montou sua base militar. Só em 1994 os guatós foram autorizados a reocupar parte do território, após acordo intermediado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
"Enchemos um barco com 20 famílias e partimos de Corumbá; foi uma festa", conta Ferreira. A demarcação da área de 10,9 mil hectares só ocorreu em 2003, durante o primeiro governo Lula. "Eu fui à Brasília assinar o documento", relata ele, que hoje tem 82 anos.
Aldeias têm mais de 400 guatós
Atualmente o Território Indígena Guató, ou aldeia Uberaba, abriga 46 famílias, num total de 240 habitantes. Mesmo após a demarcação, muitos não quiseram ir para o local. Também há vários descendentes que vivem nas cidades da região e não se identificam como guatós.
Mais recentemente, em 2018, o então presidente Michel Temer homologou outra área para os guatós de Mato Grosso, denominada Baia dos Guatós, onde vivem 205 indígenas - parte deles já ocupava o território há vários anos. O número total da população guató, no entanto, é desconhecido pois há muitos deles espalhados por diversas cidades da região do Pantanal.
Na Baia dos Guatós também há um movimento para revitalizar o idioma, com suporte de Godoy e Kristina, que estiveram no local em 2016, 2017 e 2018 para oficinas com professores. Os habitantes das duas aldeias não mantêm muito contato uns com os outros.
Pesca, caça e artesanatos
As principais atividades de subsistência da ilha isolada Ínsua são a pesca com vara na temporada permitida - para consumo próprio e venda -, a caça de capivaras, jacarés e caititus, e o plantio de mandioca, feijão, milho, cana, abóbora e melancia. Algumas famílias criam galinhas e um pouco de gado.
Moradores da aldeia também fazem artesanatos com plantas nativas e em madeira e são conhecidos pela habilidade em produzir canoas, atividade que perdeu força nos últimos anos mas ainda é mantida por Sebastião Correia, de 64 anos. Ele é separado da esposa e vive com dois filhos. Outros cinco moram em áreas urbanas.
Rosineli da Costa, de 30 anos, cursa a oitava série na escola indígena. Ela retomou os estudos em 2022, suspensos há 13 anos para cuidar dos dois filhos. Viúva há um ano, pretende cursar universidade, mas ainda não definiu o curso.
Ela produz cestos, porta-joias, tapetes e vestimentas típicas usadas em ocasiões de festas com material colhido na própria aldeia e no rio, como aguapé e folha de lança (plantas de água) e folhas de carandá e apuí (palmeiras). Os artesanatos são vendidos por uma prima dela em feiras de Corumbá e outras cidades.
"Trabalho (formal) só tem de professor, no posto de saúde e no tratamento de água", informa Francisca. Este é um dos motivos que levam vários guatós a migrarem para áreas urbanas, como Corumbá.
Dos 11 irmãos de Francisca, só cinco vivem na aldeia. Entre os 10 irmãos de Rosineli, quatro permanecem na Uberaba - um deles é o cacique Osvaldo Correia da Costa e o outro o vice cacique e coordenador da escola, Laucídio Correia da Costa.