Primos da natação paralímpica celebram medalhas em Mundial e sonham com Paralimpíadas
Samuel e Tiago perderam os dois braços após receberem uma descarga elétrica que quase os matou, mas natação revelou um caminho de sucesso
Samuel comemorava seu aniversário de dez anos – o primeiro depois do acidente que o fez perder os dois braços. Ganhou dos pais uma festa surpresa, e foi nela que reencontrou o primo-irmão que, junto dele, por muito pouco não perdeu a vida: Tiago, cinco anos mais velho, estava receoso pelo reencontro.
Como ambos, agora sem os dois braços, se abraçariam? A cena rodeava a cabeça de Tiago, que sabia que seria um convidado surpresa e que o reencontro especial seria presenciado por toda a família. Os primos, que não se desgrudavam quando meninos e permanecem unidos na juventude, foram vítimas de uma descarga elétrica fortíssima enquanto buscavam uma pipa. Foi o que os fez perder os braços.
Samuel e Tiago, hoje, são profissionais de natação paralímpica. Neste agosto, conquistaram medalhas de prata e bronze no Mundial da modalidade. Samuel está classificado para os Jogos Parapanamericanos. Tiago tem grandes chances de se classificar em uma prova que deve acontecer na próxima semana. Os dois meninos do interior de São Paulo, vítimas de uma tragédia, são as novas promessas do Brasil para o esporte paralímpico.
Quando tudo começou
Samuel e Tiago viviam em diferentes cidades: o mais novo morava em Campinas, no interior de São Paulo, enquanto o mais velho vivia na capital. Entretanto, desde muito pequenos, sempre foram próximos: brincavam juntos e aterrorizavam a família, tamanhas traquinagens que inventavam de fazer.
Foi numa delas que os primos viram suas vidas mudarem totalmente. Brincavam na rua quando perderam a pipa, que parecia voar longe. Os meninos não viram que o brinquedo estava rente a um fio elétrico e, na tentativa de recuperá-lo, subiram até o segundo andar da casa da tia, pegaram uma barra de ferro que estava próxima e a utilizaram para alcançar a pipa. Samuel não se lembra de nada. Tiago se lembra de uma sensação de choque percorrendo todo seu corpo. E mais nada.
Samuel se lembra de quando o bombeiro perguntou-lhe se conseguia mexer o braço. Ele respondeu que não. Viu, então, o homem fazer uma expressão ruim ao colega de profissão. Se lembra, também, das histórias que permearam o acidente: enquanto o bombeiro rasgava a calça jeans de Tiago – procedimento padrão em casos de acidente –, o menino gritava que a peça era nova e que sua mãe lhe mataria. Os dois, um ao lado do outro, hoje contam aos risos a história ao Terra NÓS.
Os médicos disseram à família dos meninos que as chances de eles sobreviverem não passava de 1%. Foram mais de dez procedimentos cirúrgicos até que essa chance, enfim, se concretizasse.
O retorno
Quando acordou no hospital, duas semanas depois do acidente, Samuel pediu à mãe uma caixa de lápis de cor e um caderno para colorir. A reação da mãe foi de tensão, mas não demorou até que o menino começasse a dominar a arte de fazer tudo com os pés. Ainda no quarto do hospital, ele começou a jogar videogame.
Para Tiago, que era mais velho, a notícia pesou mais: “Tive uma sensação terrível quando acordei. Tudo estava apagado, eu não conseguia ver minha perna. Quando acordei, pedi um copo d’água – lembro que sentia muita sede. Tinha um negócio enorme na minha cabeça, era pesado. Foi quando percebi que estava sem os braços. Era menino, não sabia o que estava acontecendo. Pensava que os médicos iriam reimplantá-los em algum momento”, conta. “Me desesperei, e só me acalmei quando minha mãe chegou”.
Tiago e Samuel ficaram no hospital por cerca de um mês. A vontade dos dois, eles contam, era retornar à escola o mais rápido possível. Samuel sequer imaginou que algo pudesse mudar entre os amigos, e de fato foi acolhido e auxiliado por todos. Tiago ficou mais reticente: tentou postergar o retorno por mais tempo, mas quando a ficha de que teria de retomar sua vida caiu, também encontrou uma rede de apoio potente entre os colegas e professores.
Uma nova vida
O primeiro passo da reabilitação dos primos foi na AACD. Fisioterapia para fortalecer as pernas junto de exercícios de fortalecimento na água – a parte que os dois mais gostavam. Só que os exercícios tinham uma duração específica, e tanto Samuel como Tiago – cada um em sua reabilitação – não queriam sair da água de forma alguma.
Foi na AACD que me descobri uma pessoa com deficiência e que entendi que isso não me fazia alguém sozinho. Que havia outras pessoas como eu, e que havia um mundo de possibilidades mesmo sendo PCD.
Samuel sequer sabia nadar, mas a água o encantava. Foi quando o médico que o acompanhava recomendou a seus pais que o matriculassem em uma escola de natação. Aprendeu a nadar e, o que era para ser somente uma brincadeira virou coisa séria: seu bom desempenho o fez competir pela primeira vez nas paralimpíadas escolares. Foram cinco provas, uma medalha de ouro e um troféu de destaque. “Pensei: ‘Isso aqui é para mim. Quero seguir carreira aqui’”.
Uma nova habilidade
Depois dessa competição, Samuel foi convidado para treinar na base da seleção brasileira, onde se destacou. Pouco depois, se tornou atleta do Praia Clube, de Uberlândia, por onde compete ainda hoje.
Com Tiago, o caminho foi parecido: natação foi uma forma de reabilitação corporal que virou um esporte querido. Ele e o primo se encontravam em todas as competições. A família, na arquibancada, não economizava gritos para os dois. A natação uniu uma dupla que sempre foi próxima, e agora eles competem juntos pelo Brasil.
No ano passado, Samuel superou o recorde estabelecido pelo nadador Daniel Dias, um ídolo brasileiro multimedalhista, em 2014. Samuel bateu o tempo de Daniel nos 50 m borboleta da classe S5, que envolve pessoas com limitações físico-motoras. Percorreu a distância em 33s57, contra 33s98 de Daniel, até então o melhor tempo brasileiro.
Tiago relembra uma conversa com a mãe que o emocionou bastante. Desde que perdeu os braços, dizia a ela que sonhava em ter um emprego com carteira assinada, mas sentia que nunca mais conseguiria. A mãe, sua apoiadora, não deixou de incentivá-lo a correr atrás de seus sonhos.
Quando fui contratado pelo Praia Clube, minha mãe se lembrou dessa história e me disse: 'Olha aí, filho. Agora você tem uma carteira assinada e faz o que ama: nadar'.
O sonho paralímpico
Além de compartilharem um sobrenome e um divisor de águas em suas vidas, Samuel e Tiago compartilham o sonho de ir a uma Paralimpíada. Apesar da pouca idade (16 anos), os números de Samuel mostram que o sonho está perto de virar realidade. O mesmo para Tiago, que conseguiu bons índices no último Mundial.
“Nós vivemos uma realidade que pode mudar a qualquer momento”, diz Samuel. “Não sei onde estarei daqui a dois anos, mas sei onde quero estar.”