Prisão por furto de itens básicos dobrou em 5 anos em Salvador
Furtos famélicos são realizados por pessoas em situação de vulnerabilidade que precisam de alimentos, remédios e itens de higiene
Desempregada, grávida, em situação de rua e com três filhos para criar e alimentar, Patrícia* não teve outra opção a não ser o furto. Em janeiro deste ano, ela entrou em uma loja em um shopping de Salvador e foi induzida por uma mulher a furtar produtos de higiene. Em troca, ela receberia uma quantia em dinheiro para suprir a fome dos filhos.
No entanto, a esperança se transformou em desespero. Ao tentar sair da loja com uma mochila, Patrícia* foi abordada por seguranças da loja e presa em flagrante. Já a mulher que fez a promessa fugiu do local.
Situações como a de Patrícia* têm sido recorrentes em Salvador. Dados da Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA) apontam que prisões por furtos famélicos dobraram nos últimos cinco anos. O furto famélico acontece quando uma pessoa em situação de vulnerabilidade furta itens necessários à sobrevivência, como explica o defensor público Pedro Casali, coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da DPE/BA.
"É um furto motivado pela fome, necessidade básica de sobreviver. São furtos relacionados a alimentos, remédio, materiais de higiene, seja em estabelecimento comercial ou não, desde que não haja violência ou coação", explica o defensor.
Em números absolutos, foram registrados 287 casos de prisões por furtos famélicos nos últimos cinco anos.
De 2017 a 2021, se comparado ao número de furtos gerais em Salvador, o número de prisões por furto famélico subiu de 11,5% para 20,25%. No ano passado, dos 237 casos de furtos gerais, 20,25% correspondiam a furtos famélicos. Em 2017, foram 554 furtos gerais, sendo 11,5% famélicos. Só nos primeiros dois meses de 2022, a DPE-BA já contabiliza seis furtos famélicos.
Das 287 casos de prisões por furto famélico, 25 pessoas foram mantidas em cárcere pela justiça. Já as demais tiveram as prisões flexibilizadas e respondem o processo em liberdade.
Segundo dados da DPE-BA, solicitado pela Alma Preta, das pessoas mantidas em cárcere, 16 pessoas eram pardas, 04 pretas e 05 não constavam a informação.
Números coletados pela Defensoria apontam que a população negra é a que mais se encontra em situação de vulnerabilidade, inclusive dentro do sistema de justiça.
Em 2019, das 5.153 prisões em flagrante, 97,8% do público preso foram pessoas negras. Quando observado o número de liberdade provisória, o percentual é quase igual entre pretos/pardos (50%) e brancos (49%), porém quando a medida é de prisão preventiva os pretos/pardos respondem por 41,4% do total e os brancos totalizam 33,7% destes registros.
"O perfil de 2020 é praticamente igual, senão piorado: 98% são pretos e pardos. Então, você vê que é uma realidade em que a população negra é a clientela da realidade das prisões brasileiras. Em Salvador, apesar de ser uma cidade negra, quando assistimos 98% de flagranteados negros, a gente percebe que não há uma proporcionalidade", pontua o defensor Pedro Casali.
Conforme levantamento feito pela Alma Preta Jornalismo no site do Tribunal de Justiça da Bahia, a maioria das pessoas mantidas em cárcere são homens e 40% dos casos envolvem denúncias de furto em supermercados e lojas varejistas.
Para o caso de Patrícia* foi adotado o princípio da insignificância, que no Direito representa o entendimento de que a conduta não oferece nenhuma periculosidade social nem danos jurídicos expressivos.
"Para que haja uma insignificância, o poder judiciário, que faz a análise do processo, precisa analisar naquele fato, naquele contexto, se há uma ofensividade na conduta, o grau de reprovabilidade, a periculosidade da ação e se o bem jurídico furtado é expressivo ou inexpressivo", explica o coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da DPE/BA
Diante da situação de extrema pobreza, Patrícia* teve a liberdade provisória decretada e os objetos furtados foram devolvidos à loja.
"A gente entende que furto famélico é de responsabilidade do Estado brasileiro e dos governos e é fruto de uma ausência dos serviços públicos para dar conta da insegurança alimentar e o aprofundamento da fome", pontua Pedro Casali.
*Nome fictício para preservar a identidade da assistida pela DPE-BA
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