Quem mandou matar Marielle e outras perguntas sem resposta 5 anos após o crime
Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados a tiros em uma emboscada no Rio. Dois suspeitos de executarem o crime foram presos, mas investigação ainda não respondeu se houve mandantes, os motivos do homicídio e de onde vieram a arma e munições usadas.
Cinco anos depois de a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes serem mortos a tiros no centro do Rio de Janeiro, a polícia ainda não identificou os mandantes do crime.
Também não se sabe até hoje qual teria sido o motivo dos assassinatos.
Não dá para dizer sequer se houve mandantes, porque os dois homens presos sob a suspeita de serem os executores do crime negam as acusações, e ninguém foi acusado além deles até agora.
Ou mesmo afirmar que os dois acusados foram de fato os executores da emboscada contra Marielle, Anderson e a assessora parlamentar Fernanda Chaves, única sobrevivente, porque os dois não foram julgados até hoje.
"A regra em casos assim tem sido a impunidade, mas estamos trabalhando para que a morte de Marielle não se transforme em mais um sem solução", diz Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, que lançou uma petição para marcar os cinco anos do caso e pressionar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por respostas.
O governo Lula enviou ao Congresso no início do mês um projeto de lei para transformar o 14 de março no Dia Nacional Marielle Franco.
"Lutaremos por Marielle Franco", disse a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ao anunciar em 8 de março um pacote de medidas para garantia de direitos femininos.
Estava ao lado dela no palco a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã de Marielle, eleita recentemente pela revista Time uma das mulheres do ano.
A ministra disse à rádio CNN que não quer esperar mais cinco anos para saber quem mandou matar sua irmã.
"O crime precisa ser solucionado, será uma resposta à democracia", afirmou.
Esclarecer as mortes de Marielle e Anderson são uma "questão de honra", disse o ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Flávio Dino (PSB), ao assumir o cargo em janeiro.
"Eu disse à ministra Anielle e à sua mãe que é uma questão de honra do Estado brasileiro empreender todos os esforços possíveis e cabíveis, e a Polícia Federal assim atuará, para que esse crime seja desvendado definitivamente e nós saibamos quem matou Marielle e quem mandou matar Marielle Franco naquele dia no Rio de Janeiro", afirmou.
Dino mandou a Polícia Federal (PF) abrir um inquérito para investigar os assassinatos.
A PF irá auxiliar na apuração dos homicídios, que estão à cargo das autoridades fluminenses, entre elas o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), que anunciou neste mês os novos integrantes da força-tarefa à frente do caso.
Essa é a quarta troca em cinco anos dos promotores responsáveis pelo caso, que também já passou pelas mãos de cinco delegados da Polícia Civil do Rio.
As investigações têm sido marcadas por pistas falsas, reviravoltas e tentativas de obstrução, sem que nunca tenha sido encontrada a arma do crime ou revelada sua origem ou das munições empregadas.
"Esperamos que o governo federal cumpra o seu dever e garanta que serão respondidas as perguntas que restam, porque são muitas", diz Jurema Werneck.
Quem matou Marielle e Anderson?
Até hoje, apenas duas pessoas foram acusadas pelos homicídios da vereadora e seu motorista.
O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz foram presos preventivamente em março de 2019 e aguardam julgamento.
Lessa é suspeito de ter feito os disparos, e Queiroz teria dirigido o carro usado na emboscada. Ambos negam as acusações.
Lessa foi expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro após ter sido condenado na Justiça por ocultação e comércio ilegal de armas depois de 117 peças de fuzis terem sido apreendidas na casa de um amigo seu.
Lessa e Queiroz aguardam julgamento com júri popular, que ainda não tem data para ocorrer.
A demora foi atribuída pelo juiz Gustavo Kalil, ao negar o pedido de liberdade dos suspeitos e renovar sua prisão preventiva, em setembro do ano passado, aos sucessivos recursos apresentados pela defesa.
"Só teremos certeza que os dois indivíduos são efetivamente os executores depois que forem julgados", diz Jurema Werneck.
Quem mandou matar Marielle e Anderson?
As investigações não apontaram ainda se Lessa e Queiroz agiram sozinhos ou por ordem de alguém.
Ao longo dos inquéritos, foram levantadas suspeitas sobre o ex-vereador Cristiano Girão, ex-chefe de uma milícia que age na Zona Oeste do Rio.
Ele foi preso em julho de 2021 acusado pelo MP-RJ de ser o mandante de um duplo homicídio que teria sido executado em 2014 por Ronnie Lessa, segundo o MP-RJ. Sua defesa nega o envolvimento no crime.
Outro suspeito é Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio.
Em 2019, a Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou que "arquitetou o homocídio" e denunciou à Justiça por supostamente obstruir as investigações do caso. O processo corre em sigilo.
Girão e Brazão negam estar envolvidos na morte da vereadora e dizem que não são alvos de ações ou inquéritos a respeito.
Bolsonaro tem ligação com o caso?
Rafael Borges, presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ), diz que outra dúvida nunca realmente sanada foi se o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria alguma ligação com o caso.
Essa possibilidade começou a ser cogitada porque Ronnie Lessa era vizinho do ex-presidente em um condomínio na Barra da Tijuca.
Lessa disse à revista Veja que ele e Bolsonaro não eram próximos, mas que o ex-presidente o ajudou em 2009 a conseguir prioridade em um atendimento na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, da qual Bolsonaro seria patrono.
Também foram encontradas nas investigações uma foto de Élcio Queiroz com o ex-presidente feita em outubro de 2018 e manifestações em apoio ao ex-presidente.
Bolsonaro sempre negou qualquer envolvimento com o crime ou os dois acusados.
"É fundamental descobrir decisivamente se houve ou não participação da família do presidente da República depois de serem apontadas várias conexões possíveis", diz Borges.
Por que mataram Marielle e Anderson?
Borges diz que outra pergunta importante e que ainda não foi respondida é o motivo do assassinato da vereadora e seu motorista.
A investigação precisa responder, por exemplo, se o crime foi um ato de vingança, afirma o advogado.
"O crime tem uma dimensão política inquestionável, pelo simples fato da vítima ser porta-voz de uma pauta política-eleitoral ligada a grupos minoritários", afirma Borges.
"Foi para dar uma sinalização contra a participação de mulheres pretas empoderadas na política?"
Outra hipótese é que Marielle Franco teria sido morta por ter conquistado muitos votos em áreas antes dominadas por seus rivais políticos.
"Ou foi pela ligação dela com o Marcelo Freixo [do qual Marielle foi assessora], porque ele andava com muitos seguranças e seria difícil de matar?", questiona o advogado Rafael Borges.
De onde vieram a arma e as munições?
A perícia determinou que uma submetralhadora HKMP5 foi usada para matar Marielle e Anderson, mas a arma nunca foi encontrada.
Em 2021, Ronnie Lessa, sua mulher, cunhado e dois amigos foram condenados pela Justiça por destruição de provas ao descartar armas de fogo no mar do Rio.
A suspeita é que a submetralhadora usada na emboscada contra a vereradora e seu motorista estaria entre elas, mas nada foi recuperado pelas operações de busca.
Uma hipótese é que a arma teria sido extraviada da Polícia Civil do Rio, e as munições, de lotes vendidos à PF.
Jurema Werneck, da Anistia Internacional, diz que saber a origem da arma e munições usadas no crime é importante não apenas para solucionar este caso.
"Isso é crucial para interromper uma cadeia de violação de direitos humanos que contribui para impunidade no Brasil", afirma.
"Não sou especialista em Direito, mas, do ponto de vista do dever, se foram extraviadas arma e munições que deveriam ser controladas, acredito que o Estado brasileiro pode ser responsabilizado por estes crimes", acrescenta.
O que vai acontecer com a investigação?
A PF auxiliará a Polícia Civil e o MP-RJ na investigação do caso após o governo federal determinar a abertura de um inquérito.
Rafael Borges, da OAB-RJ, avalia que isso pode contribuir para que as investigações voltem a avançar.
"Isso não anula os esforços que já foram feitos, se soma a eles. A PF tem acesso ao banco de dados oficiais sobre armas e munições, é mais capilarizada pelo país e tem uma estrutura, aparato e expertise melhor", afirma.
No entanto, o advogado acredita que o longo tempo passado desde o crime prejudica as chances de o envolvimento da PF responder as perguntas ainda sem resposta do caso..
"Está muito longe, e o timing é decisivo. Não nutro grandes esperanças de que vai ser a solução do caso. É uma sinalização mais de ordem simbólica e política do que uma contribuição efetiva para a investigação."
O envolvimento da PF também não significa que a apuração tenha sido federalizada.
Isso só ocorreria caso o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concordasse que as autoridades estaduais não estavam fazendo um bom trabalho e aceitasse transferir a competência da investigação para a esfera federal.
Mas o tribunal rejeitou um pedido da PGR em 2020 e disse que a investigação estava sendo conduzida e não havia motivos para federalizar o caso.
Mas essa possibilidade não está descartada, segundo Flávio Dino.
"A primeira linha é trabalho em conjunto com o MP-RJ. Se não houver resultado, vamos reavaliar isso. Não estamos abandonando a tese da federalização, estamos suspendendo a tese", disse o ministro em coletiva de imprensa em fevereiro.
A família de Marielle foi contra a federalização na época em que o caso foi analisado pelo STJ por receio de que a PF sob os governos de Michel Temer (MDB) e Bolsonaro não conduziria bem as investigações.
Mas a ministra Anielle Franco afirmou recentemente que a família pode mudar de posição com o início do novo governo Lula.
No entanto, o governo federal seria preciso apresentar justificativas inéditas ao STJ para que um pedido de federalização fosse analisado, diz Borges.
"O STJ já negou, e aquela decisão transitou em julgado. O pedido pode ser refeito mas precisa ter um elemento novo. E não vi nenhum fato noticiado que justicaria isso até o momento, então, prevalece o trânsito em julgado."
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g7917eqp5o